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Vinte anos de Crise - E.H Carr Clássicos de RI
Elegância de pensamento, inteligência, observação rigorosa da realidade são atributos destacáveis desse homem que nasceu em 1892, formou-se em Cambridge em Estudos Clássicos, ingressou no serviço diplomático participando da conferencia de paz de Versalhes, atuando como professor de política internacional e publicando em 1939, no começo da II guerra mundial, seu livro mais conhecido: Vinte anos de crise.
O propósito do livro de Edward Hallet Carr é contra-atacar o defeito, flagrante e perigoso, de todo pensamento, tanto acadêmico quanto popular, sobre política internacional nos países de língua inglesa de 1919 a 1939: o quase total esquecimento do fator poder.
O capítulo primeiro trata do nascimento da ciência política internacional. Em 1914, o estudo da política internacional estava em sua infância pois o período imediatamente anterior ( La belle époque) havia trazido um elemento de estabilidade que fez com que estudos na área caíssem em esquecimento. Segundo Engels, se a sociedade tem uma necessidade técnica ela serve como impulso maior ao progresso do que dez universidades. O advento da I Guerra mundial trouxe a necessidade de produção teórica sistemática de política internacional de volta a cena. A hipótese que sustentava esta retomada era evitar a recidiva da guerra estudando as suas causas. Contudo, Carr, avalia que todo começo é utópico pois nele prevalece a vontade de se obter os fins sobre a avaliação dos meios, a generalização sobre a análise crítica. Irá romper esse processo o Realismo que dará entendimento aos fatos com base nos elementos disponíveis no momento sem resvalar na inatividade de se prender apaixonadamente aos mesmos.Assim, Utopia e Realismo são duas variáveis eternas do pensamento político.
Essas duas forças motrizes do pensamento político tem as mais diversas expressões para Carr. Podem se dar no debate entre livre-arbítrio e determinismo, teoria e prática, intelectual e burocrata, apriorismo e empirismo, esquerda e direita, ética e política e moral e poder.
Após esse arrazoado sobre as duas faces de qualquer política introduz-se uma leitura crítica dos fundamentos da Utopia. Começa ela, na destruição do sistema feudal, no entendimento de que a razão passava a ser o elemento central de julgamento da moral sendo o racionalismo e o iluminismo exemplos desta tese. Com Jeremy Benthan e sua famosa fórmula (a maior felicidade para o maior numero), passamos a ter um padrão ético absoluto. Assim, abria-se o campo para o ascenso da opinião pública pois o que os homens julgassem em maior número equivaleria ao mais razoável e, portanto, desejável, esclarecido e que proporcionaria maior felicidade. Na sociedade liberal do século XIX a ideia fez escola e passou-se, para um entendimento de que nos assuntos internacionais a opinião pública se bem informada dos fatos tomaria a melhor decisão para o Estado. O otimismo deste século se baseava no tripé: a busca do bem era questão de raciocínio correto, a difusão do conhecimento permitiria a todos pensar corretamente e uma vez que se pensasse corretamente os homens agiriam corretamente. No plano internacional o maior representante desse ideário foi Woodrow Wilson mentor intelectual da Liga das Nações.
A liga das nações foi uma organização internacional criada em 1919 com a assinatura do Tratado de Versalhes com sede em Genebra na Suíça, cujos objetivos eram evitar a guerra, encorajar a cooperação, desarmamento e melhorar as condições sociais. Apesar da boa intenção ela entrou para história como exemplo de utopismo em relações internacionais porque não conseguiu evitar a catástrofe de outro conflito internacional. Carr, explica que os fundamentos sob os quais se baseavam a noção da Liga não eram sólidos o bastante. As principais fraquezas da liga foram não ter um exército próprio capaz de impor as decisões tomadas, o não ingresso dos EUA na liga deixou de fora a principal potencia da época e a ineficiência dos processos decisórios que deveriam ser unânimes.
Porém, seria errado dizer que a liga foi um fracasso total tivemos alguns sucessos como o controle de algumas doenças (malária), melhorias nos métodos de coibição ao narcotráfico internacional, a crise da ilha Aaland entre Suécia e Finlândia e a região de Corfu entre Itália e Grécia que de outro modo teriam redundando em guerra entre os estados envolvidos. Na década de 30, porém a crença das pessoas foi abalada porque ou a Liga não tomava as decisões a tempo ou as tomava mal. Em 1932, o Japão invade a Manchúria e a Liga responde com boicote ao comércio com o Japão, ocorre que o principal mercado para o Japão era o mercado dos EUA que não estava na Liga e a Inglaterra buscava estreitar laços com o Japão.Em 1935 a Itália de Mussolini invade a Etiópia dando mais um exemplo de um ataque de um país forte a um país fraco. A resposta não veio pois Grã Bretanha e Franca estavam em depressão econômica e menos comércio com a Itália significava mais desemprego e mais crise.
Outro ponto que Carr aborda e destaca para atacar o utopismo é o da chamada Harmonia de Interesses. Esta teoria é uma resposta a pergunta dos motivos da obediência humana. Segundo a harmonia de interesses os homens obedecem porque percebem que o seu interesse individual coincide com o interesse da comunidade e vice-versa de modo que buscar um é o mesmo que busca outro.
No plano internacional esta ideia irá redundar no entendimento de que as nações ocupando-se de seu desenvolvimento contribuem para o desenvolvimento da humanidade. O laissez-faire, a mão invisível do mercado ajudaram a disseminar essa ideia que favoreceu sobremaneira a Inglaterra. Logo, se tornaria em uma ideologia de dominação em que a Paz era o interesse de todos e aquele Estado que não a desejasse não deveria fazer parte da comunidade das nações. O interesse comum na paz mascara o interesse de alguns estados quererem manter o status quo sem ter de lutar por ele e outros de querer mudá-lo sem ter de lutar para isso.
A crítica realista que faz Carr dessa forma de pensar do século XVIII e XIX parte de Maquiavel que prescreve a história como um processo de causa e consequência sem muito espaço para lampejos imaginativos. O fato da teoria provir da prática e não o contrário e o fato da ética ser função da política. Neste sentido, do ponto de vista do realismo esse deve colocar a prova as interpretações abstratas do tipo internacionalismo, cosmopolitismo, harmonia de interesses a fim de encontrar em cada uma delas o interesse nacional de cada estado.
O realismo assim cumpre o papel de desmascarar o edifício utópico, porém, e esse é o elemento fundamental de Carr, o realismo por si só também não é capaz de explicar a realidade. A beleza da análise de Carr é o fato de ser um crítico impiedoso tanto do utopismo quanto do realismo. O utopismo deve ser destruído pelas armas do realismo, isto é, este deve testar todas as hipóteses daquele afim de traze-lo para o campo da realidade internacional, após isso, se faz necessário a criação de uma outro utopia pois o realismo redunda em uma luta nua pelo poder que se configura na prática impossível.
Interessante notar que Carr não estabelece a separação entre política e e economia como os liberais do século XIX, tratando-as como elementos estratégicos interligados estando tanto o poder econômico quanto o poder político submetidos ao interesse geral estratégico maior do Estado. Algumas das falácias da separação se dá no debate público que pode se resumir no dístico “canhões ou manteiga”. Isto é, por qual motivo os Estados não investem em bem estar (manteigas) ao invés de desperdiçar dinheiro público em armamentos (canhões)? Ocorre que na realidade a questão não se coloca como uma mera preferência de um em detrimento de outro. Investir em canhões pode ser fundamental dada a posição relativa de um dado estado e pode inclusive servir para garantir manteigas. Além disso, o realismo vê a economia como um elemento de poder que pode contribuir para aumentar o poder do Estado. Em tempos de paz e de impossibilidade de recorrer-se a força as sanções econômicas tem servido de armas para pressionar. O mesmo vale para o poder do capital.
No século XIX exemplos não faltam quanto as balas esterlinas, mais recentemente temos a diplomacia do dólar etc. Conclui-se que o poder é indivisível e utilizar economia ou exército sempre atenderá ao mesmo fim não se separa, pois, economia de política em relações internacionais.
Sobre a moral na política internacional Carr afirma que existe duas interpretações possíveis.
A realista para qual não há moral aplicável aos estados e a utopista para qual a moral existente é a mesma aplicável aos indivíduos. O que se sobressaí, contudo, é que embora as pessoas vejam o estado como um ente moral elas não esperam que ele aja moralmente como se um indivíduo fosse.Há portanto diferenças entre elas sendo que a moral estatal é mais limitada que a individual.
É como se ao mesmo tempo fosse importante para um estado, em um gesto de solidariedade, permitir o envio de recursos para um país que sofre de uma tragédia natural. O ato é elogiável desde que o recurso seja ínfimo.
A comunidade internacional existe somente na medida em que as pessoas se comportam como se ela existisse. Não possui os requisitos básicos de uma comunidade interna como igualdade entre os membros e o principio de precedência do todo sobre a parte.
Quando escreve sobre a ideia de direito e mudança ou da contraposição existente entre política e direito Carr faz primeiramente uma limpeza conceitual visando a dar aos termos o significado real tanto do direito quanto da política. O direito internacional, explica, é um direito sui generais que se caracteriza por abranger um comunidade não desenvolvida e não totalmente integrada além de não possuir força superior aos estados para o cumprimento de suas resoluções. Da perspectiva realista o direito é a concretização de uma desigualdade política em termos jurídicos. A mudança pacífica deve necessariamente visar e contar com o apoio de estados poderosos.
Na ultima parte de seu livro Carr reflete sobre as perspectivas de uma nova ordem internacional demonstrando que os vinte anos de crise foram, em outras palavras, um período de utopia que foi destruído pelo realismo. As noções fáceis que davam racionalidade para a interpretação do mundo em bases do tipo " o que é bom para um e bom para todos" ou do "o que é economicamente correto nunca pode ser moralmente errado" caíram por terra por não estarem fincadas na realidade. Em 1939 Carr ja identificava uma tendência de aproximação entre os Estados por conta do aumento das trocas comerciais e a dificuldade de se conceituar soberania neste contexto. Para Carr poder e moral continuarão desempenhando um papel imprescindível na vida dos Estados porque qualquer comunidade não pode existir sem esses dois elementos o primeiro para obter a obrigação e o segundo para obter o consentimento.
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