Proteção do bem público global não é filantropia: o conflito entre interesses individuais e coletivos no regime de mudanças climáticas.
Mundão

Proteção do bem público global não é filantropia: o conflito entre interesses individuais e coletivos no regime de mudanças climáticas.


Roberta Zandonai

O ano de 2010 começou com a publicação de dados alarmantes da Agência Espacial dos EUA (NASA) a respeito das condições climáticas mundiais. De acordo com o órgão, a década passada foi a mais quente desde 1880, e os anos de 2005 e 2009 apresentaram as maiores temperaturas médias desde o início do século XX. A situação vivida no cenário internacional apenas confirmou esta tendência. A Rússia, por exemplo, enfrentou um verão extremamente quente e seco, que aniquilou suas plantações de trigo e gerou crise na economia nacional. Já no Paquistão e na China, água é o que não faltou durante as enchentes sem precedentes na história destes países. E, mesmo no Brasil, um período bastante incomum de chuvas fortes atingiu diversas regiões durante os primeiros meses do ano e foi seguido por uma forte seca marcada por queimadas nos parques e reservas nacionais.


De acordo com previsões da comunidade científica, principalmente dos membros do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a situação pode piorar muito mais se medidas drásticas não forem tomadas. Isso exige a ação conjunta de todos os Estados, principalmente dos maiores emissores de gases de efeitos estufa (Estados Unidos, União Européia, representada como bloco, e China). O que se vê, porém, é a dificuldade de países com características distintas chegarem a um consenso. Mas, se a questão é tão relevante, por que um acordo é difícil?
Nas últimas décadas, ganhou força no cenário internacional o consenso de que a elevação da temperatura terrestre é causada diretamente pelas atividades humanas, principalmente as geradoras de gases de efeito estufa (GEE), seja pelo desmatamento, matriz energética concentrada em emissões de carbono ou por processos industriais. As conseqüências não são sentidas apenas em âmbito local e regional, mas afetam todos os países, razão pela qual a questão ambiental passou a ocupar uma posição privilegiada na agenda internacional - principalmente após a primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente em 1972. A partir daí, uma série de eventos foram organizados para discutir o desenvolvimento sustentável, e novas organizações internacionais surgiram: UNEP/PNUMA, IPCC, Convenção Quadro da ONU sobre Mudanças do Clima - CQNUSMD, etc.
No entanto, em 2001, o presidente eleito dos EUA, George W. Bush, retirou o país das negociações do Protocolo de Kyoto, até então o primeiro acordo global de cooperação para reduzir a poluição atmosférica por meio do estabelecimento de metas e mecanismos específicos. A decisão marcou um enorme retrocesso na tentativa de consolidar uma nova ordem mundial e abalou as esperanças daqueles que lutavam pela causa, pois a superpotência é responsável por quase um quarto das emissões globais de GEE e o seu não-comprometimento pode anular os esforços de todos os demais países signatários do Protocolo.
O motivo apresentado à época pelo governo estadunidense era de que o cumprimento dos termos afetaria a economia do país - e aí chegamos ao ponto central no debate da problemática ambiental no mundo moderno: as exigências internacionais divergem do interesse nacional de alguns países e de grandes empresas transnacionais com grande poder de influência. Como afirma Viola (2002, p. 27), “o benefício coletivo exige cada vez mais ações que contrariam os interesses de cada Estado individual”, mas os tomadores de decisão ainda não perceberam essa lógica.
Com o fim da Guerra Fria e a emergência de novos atores e temas nas Relações Internacionais, os problemas estão se tornando cada vez mais internacionalizados (tendo características transnacionais). O processo é acelerado pela revolução dos meios de comunicação e essa multiplicidade de atores aumenta a complexidade das negociações, que, em pleno século XXI, devem ser regidas pela cooperação e criação de novas diretrizes, seja no âmbito comercial, empresarial, e principalmente ambiental.
No que diz respeito à maior eficiência do regime de mudanças climáticas, a cooperação não se restringe apenas a parte jurídica, mas implica algo muito maior: uma profunda transformação na maneira como se entende consumo, energia, transportes, alimentação, moradia, ou seja, uma mudança profunda na relação do homem consigo mesmo e com o ambiente que o cerca. Uma nova consciência é necessária. Porém, no âmbito das grandes tomadas de decisões políticas internacionais, os governantes ainda resistem em ceder em troca de um bem coletivo, qual seja, a proteção do meio em que vivem. Economias intensivas em carbono acreditam que têm muito a perder com um novo sistema baseado em baixas emissões de GEE, mas não conseguem perceber que o dano pode ser muito maior se nada for feito.
No caso dos Estados Unidos, por exemplo, todo o modelo de fornecimento de energia e transportes teria que ser revisto, uma vez que o automóvel individual movido a combustível fóssil é o principal meio de locomoção e a maior parte da energia do país é produzida a partir de usinas termoelétricas que queimam carvão e, secundariamente, petróleo. De acordo com o último Assessment Report, produzido pelo IPCC em 2007, o país é responsável por 20% das emissões globais de CO2, perdendo apenas para a China, cujas emissões correspondem a 22%, com um crescimento anual de 8%, derivado principalmente da ineficiência de sua matriz energética (VIOLA, 2009, p. 20).
Apesar da posição estadunidense, há luz no fim do túnel: o desinteresse pelo meio ambiente, que predominou no país oriental durante todo o século XX, dá espaço atualmente para um novo posicionamento, que inclui investimentos em novas tecnologias menos poluentes. Japão e União Européia também exercem um papel de liderança, tanto no âmbito interno (por meio de investimentos em energias renováveis e em meios de transporte mais eficientes, por exemplo) quanto externo (transferência de tecnologias, persistência em chegar a acordos internacionais, investimento em projetos estrangeiros, entre outros). Outros Estados emergentes, como o Brasil, também têm desempenhado um importante papel, principalmente junto às nações em desenvolvimento ou atrasadas.
De outro lado, porém, regimes fundamentalistas e monárquicos, ou membros da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), tendem a rejeitar ou apoiar de maneira bastante restrita as propostas da CQNUMC.
Neste grande tabuleiro em que cada jogador tenta tirar suas vantagens, o nível de cooperação necessário para minimizar as atuais conseqüências da alteração do clima, bem como para instaurar uma sociedade de baixo carbono e evitar desastres futuros, parece um horizonte ainda distante. Tudo é uma questão de interesse, e enquanto o interesse individual - seja dos Estados, das empresas, das organizações e dos indivíduos – prevalecer sobre o interesse público global, os debates não devem resultar em ações práticas e efetivas. Neste caso, uma projeção pessimista poderia caracterizar como uma abstração o conceito de sustentabilidade definido pelas Nações Unidas, que seria “o atendimento das necessidades das gerações atuais, sem comprometer a possibilidade de satisfação das necessidades das gerações futuras”.

Referências:
VIOLA, E. O Brasil na Arena Internacional da Mitigação da Mudança Climática 1996-2008, Centro de Estudo de Integração e Desenvolvimento, 2009.
VIOLA, E. O Regime Internacional de Mudança Climática e o Brasil, In. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 50, São Paulo, 2002.

6 período - Relações Internacionais - UNICURITIBA



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