O Papa no Reichstag: o verdadeiro fundamento do Estado de Direito
Mundão

O Papa no Reichstag: o verdadeiro fundamento do Estado de Direito



EX.FACTO.ORITVR.IVS


Por Fernando Belmonte Archetti*

Imaginemos o sistema solar. Naturalmente, no centro está sol; orbitam derredor deste os outros planetas e seus respectivos satélites, além de outros corpos celestiais. O sol deste artigo é a visita do Papa Bento XVI à Alemanha, mais particularmente ao Reichstag, o parlamento alemão, e o discurso ali feito no dia 22 de setembro de 2011, em que o Pontífice Romano falou sobre o verdadeiro fundamento do Estado de Direito, dentre outros assuntos que não dizem respeito a este texto. Entre os planetas na órbita solar deste artigo, temos o eminente jurista espanhol Javier Hervada, dentro outros, como Luc Ferry e o próprio Hans Kelsen, além de outros que porventura poderão ser mencionados.


Para iniciar a discussão, partir-se-á de uma constatação feita por Eric Deschavanne e Pierri-Henri Tavoillot do College de Philosophie a respeito de 2 novos fenômenos de nossa época. ‘’Evidentemente, é preciso estar atento ao que diz respeito aos fundamentalismos e a um obscurantismo sempre renovado, mas como não ver que o que ameaça atualmente tanto o público quanto o privado provém menos do dogmatismo do que da ignorância? Pois nossa época desencantada viu surgir dois fenômenos novos, passíveis de reabrir os conflitos do passado’’, dizem. O primeiro desses fenômenos é o surgimento de uma religião dissociada de qualquer cultura, e.g., os fundamentalismos, o que chamou Olivier Roy de La Sainte Ignorance. O segundo designa uma cultura livre de qualquer religião, o que faz com que se chegue a esquecer que a religião foi por muito tempo nossa cultura. Os autores franceses advertem: ‘’Na falta de uma apropriação lúcida e esclarecida dessa herança, é grande o risco de se ver ressurgirem os demônios do passado’’. Antes de prosseguir, ressaltemos apenas o conceito presente nessa fala a respeito do desencantamento do mundo, lembrando tratar-se de um conceito weberiano, consequência do avanço da racionalidade, o que causaria uma ‘’desculturação’’, segundo ele, uma decadência da cultura clássica. Limitemo-nos a citar esse aspecto do conceito; valorá-lo não é de interesse para os objetivos do texto. 
Mas de que cultura estamos falando? Dentre nós, filhos de europeus, cuja cultura forma um dos elementos do tríplice encontro que compõe a cultura brasileira, à qual se deve adicionar a africana e a indígena, perguntemo-nos o que é a cultura europeia. Ao tríplice encontro de três mundos na cultura brasileira, corresponde outro tríplice encontro que designa a cultura europeia. O Papa nos diz: ‘’A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro da fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos gregos e o pensamento jurídico dos romanos. Esse tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa’’. 
Para prosseguir, retomemos a fala dos franceses acima. Dissemos: ‘’a religião foi por muito tempo nossa cultura’’. Vamos constatar outro fato de nossa época, a partir da observação, a que o Pontífice se refere: ‘’Hoje se considera a ideia do direito natural bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo de só mencionar o termo.’’ Grifou-se ‘’direito natural’’ para ressaltar a centralidade do conceito neste texto. Antes de retomarmos tal conceito, prossigamos com a análise de outros trechos do discurso ao Reichstag.
‘’Na História, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo. (...) O Cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II a.C.’’
Nesse século, do encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos gregos, e os juristas romanos, formou-se a cultura jurídica ocidental. Daí, passando pela Idade Média cristã, o iluminismo e a Declaração dos Direitos Humanos, o Papa alemão cita a Lei Fundamental de seu país que, em 1949, reconheceu os ‘’direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça do mundo’’.
Aqui, vamos observar, então, que o fundamento último de todo o direito está na razão e na natureza humana, os conceitos centrais do direito natural. Paralelamente a isso, notemos a situação aberrante de nossos tempos em que, por um lado, foi desta posição dos teólogos cristãos contra um ordenamento jurídico revelado e o reconhecimento das duas fontes do direito, acima citadas, que se desenvolveu uma cultura de defesa aos direitos fundamentais e mesmo aquilo que definimos como justo; de outro lado, a anomalia que citamos antes, em que se considera o direito natural como parte de uma Doutrina Católica curiosa. Seria insurgir-se contra o próprio motor que fez desenvolver toda a cultura de respeito aos direitos humanos. 
Uma pergunta, então, aos comunitaristas: é a razão algo que apenas os ocidentais possuem? De fato, o que é curioso é imaginar semelhante situação. Queremos destruir o fundamento de nosso direito? O que, então, substituí-lo-á? Tirando-lhe os fundamentos, nesta atitude desencantada, não incorremos no perigo de fazer desabar o próprio edifico que se erigiu sobre essa sólida base da razão e da natureza?
Outra pergunta, antes de concluir, deve ser feita. O que o Papa propõe, então, é uma volta às origens, um desprezo da razão positivista? A resposta é ‘’não’’.
A herança positivista ‘’é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade’’.
A visão reducionista e funcional do positivismo estabelece entre o ‘’ser’’ e ‘’dever-ser’’ um dualismo insuperável, pelo próprio Hans Kelsen propugnado. As normas, então, só poderiam derivar de uma vontade criadora e, portanto, não da natureza e da razão per se. Aqui podemos entender a radicalidade da concepção positivista que presto lança um golpe à cultura jurídica ocidental, cujas consequências já discorremos aqui. O Papa, em seu discurso, por fim, defende que, ao contrário dessa visão positivista equivocada – embora importante no conjunto do saber humano - , o homem deve respeitar a sua ecologia, a ‘’ecologia humana’’, isto é, o homem é espírito e vontade, como assevera o positivismo, mas também é natureza e deve respeitá-la. A questão da origem da natureza é outra, logicamente separada dessa e que exige outras deduções e raciocínios.
Demais, com Javier Hervada, temos que o ordenamento jurídico, contrariamente ao esquema de Kelsen, não é meramente um sistema hierárquico de normas: é um conjunto de relações jurídicas, consoante com a frase latina ex facto oritur ius, dos fatos se origina o Direito, o que retira o caráter absoluto às normas, que não existem per se.
Concluamos com esta fala do filósofo espanhol Julián Marías: ‘’(...) nos damos conta do descobrimento da necessidade da perspectiva e da insuficiência de toda perspectiva. Isto é - e quiçá esta será a conclusão fundamental do balanço filosófico de tantos séculos – que toda perspectiva filosófica é válida, mas nenhuma é suficiente, nenhuma é única, nenhuma é excludente. Então se pode chegar a transcender cada perspectiva particular e descobrir a insuficiência de todas elas e a necessidade de uma integração entre todas elas’’.
Assim, nenhuma perspectiva do conhecimento é, por si só, suficiente. Sem negar as contribuições de cada perspectiva em particular, é necessária a integração entre cada uma delas, não aceitando nenhum tipo de esquema generalizante e reducionista. Apenas através de uma antropologia que entende o ser humano como ser integral, isto é, sem privilegiar qualquer uma de suas faculdades, tal como a razão, é possível se chegar a uma concepção compreensiva de Direito. Desprezar a antropologia e outras ciências, como a filosofia, seria tal atitude reducionista e que inequivocadamente levaria ao erro. Apropriarmo-nos da herança cultural a nós legada tampouco é capricho, mas tarefa imperativa para não destruir os fundamentos que possibilitaram o desenvolvimento da cultura de respeito aos Direitos Humanos. Nessa tarefa, igualmente deve-se entender o homem e sua liberdade, que deve ser compreendida através do conceito da ecologia humana do Papa: a verdadeira liberdade só se realiza quando respeitamos a nossa natureza, em plena harmonia com todas as faculdades humanas.

* Fernando Belmonte Archetti é estudante do quinto período do curso de Relações Internacionais no Unicuritiba.

Referências:
Discurso na íntegra: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2011/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20110922_reichstag-berlin_it.html
FERRY, Luc; JERPHAGNON, Lucien. La tentation du christianisme. Grasset & Fasquelle, 2009.
Conferência sobre Heráclito do curso ‘’Los Estilos de Filosofía’’ de Julián Marías : http://www.hottopos.com/rih4/mariash.htm
HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. Martins Fontes, 2008.



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