Mundão
Mercosul aos 20 anos: a evolução dos papéis do bloco e a inserção internacional do Brasil
 
 
George Sturaro 
Em 2011, o Tratado de Assunção de 1991,  acordo criador do Mercosul, completará 20 anos. Tal ocasião convida à  reflexão a respeito do bloco, dos seus avanços e retrocessos, dos seus  efeitos concretos, das suas perspectivas e do papel que ele desempenha  nas estratégias de inserção internacional dos Estados-membros. Seguindo  por esta última linha, pretendo aqui desenvolver reflexão a respeito da  evolução dos papéis que o bloco desempenha nos marcos da inserção  internacional do Brasil.
Numa revisão da literatura sobre o  Mercosul, é possível identificar ao menos quatro papéis atribuídos ao  bloco pelos estudiosos. São eles: (i) o econômico, (ii) o negociador,  (iii) o securitário e (iv) o geopolítico. Esses papéis são exercidos em  diferentes dimensões das relações internacionais, em diferentes escalas  geográficas e, com maior ou menor destaque, em diferentes períodos.  Todos eles têm grande relevância para a inserção do Brasil no cenário  internacional contemporâneo.
1. O papel econômico: promoção do desenvolvimento
A grande atenção conferida ao papel  econômico do Mercosul na literatura deve-se a que o bloco foi  originalmente concebido para servir de instrumento do desenvolvimento  econômico dos Estados-membros, pelo livre-comércio, inicialmente, e pela  integração dos mercados, numa etapa posterior.  Esse instrumento, a  despeito dos reveses que sofreu a sua efetiva implementação, foi  responsável por resultados econômicos expressivos durante a maior parte  da década de 1990, dos quais o Brasil foi um dos grandes beneficiados. O  comércio intra-bloco quadruplicou no período 1991-1998, duplicou no  1994-1998 e, ao fim do período, contabilizou cerca de 23% do comércio  exterior dos países-membros (PAMPLONA e FONSECA, 2009, p. 12). Em valor,  o comércio intra-bloco cresceu duas vezes mais que o extra-bloco  (HOFFMANN et al., 2008, p. 106).
A parte que coube ao Brasil nessas  transações é expressiva e teve grande peso na conta comercial do país.  Em 1998, 17,4% do total das exportações brasileiras tiveram por destino  os países do Mercosul, contra 4,2% em 1991 (KUME e PIANI, 2005, p. 375).  O bom desempenho do Mercosul e, por extensão, do Brasil terminou em  1998, quando iniciou a crise financeira no mundo em desenvolvimento. A  crise chegou ao Brasil em 1999 e corroeu a âncora cambial do Plano Real  do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos anos seguintes (2000-2002),  ela afetou, de um modo particularmente grave, a Argentina. O efeito  imediato foi a redução do comércio intra-bloco e a introversão das  economias dos Estados-membros, que implementaram medidas de proteção a  setores estratégicos, a exemplo do automobilístico.
No período subsequente, o desempenho do  Mercosul e a participação do Brasil no comércio intra-bloco, embora  tenham ultrapassado o recorde histórico, não se recuperaram em termos  percentuais (HOFFMANN et al., op. cit., p. 106; 112-113).
2. O papel negociador: incremento do poder de barganha nas negociações internacionais
O papel negociador teve origem com a  Cúpula de Ouro Preto do Conselho Mercado Comum de 1994 e com o Protocolo  homônimo, assinado na mesma ocasião. A Cúpula, que criou a TEC (Tarifa  Externa Comum), converteu o bloco em união aduaneira. Neste estágio, a  integração veio a exigir a harmonização das políticas econômicas dos  Estados-membros para o resto do mundo e, assim, tornou obrigatório que  eles assumissem posições unívocas nos fóruns internacionais e nas  negociações bi-regionais.
Por sua vez, o Protocolo dotou o  Mercosul de personalidade jurídica internacional, pré-requisito para que  o bloco pudesse negociar e assinar acordos. Em 1998, a criação do Foro  de Consulta e Coordenação Política (FCCP), cujo propósito é favorecer a  construção de consensos entre os Estados-membros em matéria de política  externa, acrescentou mais força política e legitimidade ao papel  negociador do bloco (HOFFMANN et al., ibid., p. 108).   Fortalecido institucional e politicamente por essas inovações, o  Mercosul passou a representar os seus membros nas negociações  internacionais, os quais, até então, tinham de fazê-lo sozinhos, sem  contar com o poder que advém do peso do conjunto (HIRST, 2001, p. 5).
Esse atributo instrumental do bloco  conveio aos interesses da elite política brasileira, sempre em busca de  meios e recursos que lhe confiram maior margem de manobra nas  negociações com as potências do mundo desenvolvido (VIGEVANI et al.,  2008, p. 8). O poder de barganha do Mercosul jogou papel importante no  período Cardoso, quando o Brasil travou negociações difíceis com os EUA,  para definir o formato que a ALCA deveria assumir, e com a EU, para a  criação de zona de livre comércio entre os dois blocos.
3. O papel securitário: consolidação das democracias e estabilização política regional
Embora pouco estudado, o papel  securitário do Mercosul é um dos pilares centrais do bloco. Em meados  dos anos 1980, quando decidiram pela integração, os governos da  Argentina e do Brasil, presididos respectivamente por Raúl Alfonsín e  José Sarney, não perseguiam objetivos exclusivamente econômicos. A  integração que se pôs em marcha naquele momento visava, antes de tudo à  superação da rivalidade histórica, à construção da confiança recíproca, à  estabilidade política regional e à consolidação das reformas  democráticas em ambos os países (OLIVEIRA e ONUKI, 2000, p. 110-113).
A integração das economias contribuiria  com esse esforço ao fortalecer as bases materiais das novas democracias,  ampliando-lhes as oportunidades de comércio e investimento (GÓMEZ,  1991, p. 227). Após esse período inicial, ao longo da década de 1990, o  papel securitário do Mercosul foi atualizado, agora em defesa da  democracia nos Estados-membros. A Declaração Presidencial de Las Lenãs  de 1992 estipulou que a plena vigência das instituições democráticas é  condição indispensável para a existência e o desenvolvimento do  Mercosul.
O Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso  Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile, de 1998, reafirmou o que foi  estipulado pela Declaração de Las Lenãs e consagrou, entre outras  medidas, a expulsão do bloco de membro que não respeitar a ‘cláusula  democrática’. Em duas ocasiões, 1999 e 2001, sob liderança do Brasil  governado por Cardoso, esses instrumentos foram acionados para assegurar  a ordem democrática no Paraguai (SANTISO, 2002, p. 406-409).
4. O papel geopolítico: plataforma de projeção da ‘potência regional’
O papel ‘geopolítico’ do Mercosul,  diferentemente dos demais, não foi objeto nem motivação dos primeiros  acordos entre os Estados-membros. Ele sobressai apenas recentemente, à  medida que o bloco vai se fortalecendo econômica e politicamente, e diz  respeito às ambições regionais do Brasil. Parte da elite política e  diplomática brasileira, de orientação desenvolvimentista e autonomista,  vê no Mercosul um instrumento da afirmação do país como ‘potência  regional’. Segundo essa elite, a ampliação paulatina do bloco viria a  trazer os demais países sul-americanos para a esfera de influência  política do Brasil e abriria caminho para a criação de uma grande zona  de livre-comércio, da qual muito se beneficiaria a economia do país  (SARAIVA e BRICEÑO, 2009, p. 156).
Ao mesmo tempo, um Mercosul forte e  coeso funcionaria como articulador de cooperação Sul-Sul entre blocos  regionais e outros agrupamentos de países em desenvolvimento (SARAIVA,  2007, p. 51-52). A partir de 2000, quando é lançado o projeto de  integração sul-americana com a CASA, futura UNASUL, o Mercosul começa a  aparecer no discurso diplomático brasileiro como a plataforma que levará  à realização daquele projeto maior (SANTOS, 2005, p. 17-19). O grande  impulso ao ‘Mercosul geopolítico’ é dado pelo governo Lula da Silva.
Vinte anos após a assinatura do Tratado  de Assunção, verificamos que, num balanço geral, os papéis que o  Mercosul desempenha na inserção internacional do Brasil evoluíram  positivamente. O papel econômico, a despeito dos percalços provocados  por crises financeiras, é significativo: desde a sua criação, o Mercosul  tem sido um dos principais destinos das exportações do Brasil e um dos  seus principais fornecedores.
O papel negociador passou no teste de  resistência contra a ALCA no formato norte-americano, a qual, caso fosse  aceita, teria tido consequências deletérias para a economia nacional. O  papel securitário, acionado durante as crises institucionais no  Paraguai, assegurou a estabilidade política regional, sem a qual o  Mercosul é inviável. Por fim, o papel geopolítico vem articulando a  configuração de um espaço econômico e político sul-americano, no  interior do qual o Brasil será a potência principal. O Mercosul, próximo  dos seus vinte anos, é um dos mais importantes instrumentos de inserção  internacional à disposição do Brasil.
George Wilson dos Santos Sturaro é graduado em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA e mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- GÓMEZ, José. María (1991). “Democracia Política, Integração Regional  e Contexto Global na América Latina (Repensando Alguns “Nós  Problemáticos”).” Contexto Internacional, vol. 13. n. 2, p. 227-245.
 - HIRST, Monica (2001). “Atributos e Dilemas Políticos do Mercosul.” Cadernos do Forum Euro-Latino-Americano, fevereiro, p. 1-16.
 - HOFFMANN, Andrea Ribeiro; COUTINHO, Marcelo; KFURI, Regina (2008).  “Indicadores e Análise Multidimensional do Processo de Integração do  Cone Sul.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 51, n. 2, p. 98-116.
 - KUME, Honório; PIANI, Guido (2005). “Mercosul: O dilema entre união aduaneira e área de livre-comércio.” Revista de Economia Política, vol. 25, n. 4, p. 370-390.
 - OLIVEIRA, Amâncio Jorge de; ONUKI, Janina (2000). “Brasil, Mercosul e a segurança regional.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 43, n. 2, p. 108-129.
 - PAMPLONA, João Batista; FONSECA, Julia Fernanda Alves da (2009).  “Avanços e Recuos do Mercosul: Um Balanço Recente dos seus Objetivos e  Resultados.” PROLAM, vol. 1, p. 7-23.
 - SANTISO, Carlos (2002). “Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira.” Contexto Internacional, vol. 24. N. 2, p. 397-341.
 - SANTOS, Luís Cláudio Villafañe dos (2005). “A América do Sul no discurso diplomático brasileiro.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 48, n. 2, p. 185-204.
 - SARAIVA, Miriam Gomes (2007). “As estratégias de cooperação Sul-Sul nos marcos da política externa brasileira de 1993 a 2007.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 50, n. 2, p. 42-59.
 - SARAIVA, Miriam Gomes; BRICEÑO, José. Ruiz (2009). “Argentina,  Brasil e Venezuela: As diferentes percepções sobre a construção do  Mercosul.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 52, n. 1, p. 149-166.
 - VIGEVANI, Tullo; FAVARON, Gustavo de Mauro; RAMANZINI, Haroldo;  CORREIA, Rodrigo Alves (2008). “O papel da integração regional para o  Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites.” Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 51, n. 1, p. 5-27.
 
 
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