A agenda democrática da política externa brasileira contemporânea (1990-2010). Parte I: Elementos empíricos
Mundão

A agenda democrática da política externa brasileira contemporânea (1990-2010). Parte I: Elementos empíricos


George Sturaro

Nas últimas duas décadas, no bojo das mudanças em curso nos ambientes externo e interno, a agenda da política externa brasileira transformou-se qualitativamente. A agenda tradicional do desenvolvimento introvertido e da autonomia pelo distanciamento deu lugar à agenda da abertura econômica e do engajamento na construção da ordem mundial do pós-Guerra Fria, agenda esta mais alinhada com o pensamento liberal-democrático que se afirmava na cena política doméstica e na Chancelaria. Entre as pautas que compuseram essa nova agenda, figura a da promoção e da defesa da democracia no exterior, que recebeu grande atenção nos anos 1990, em especial do governo Cardoso (1995-2002).
A promoção e a defesa da democracia no exterior constituíram-se em dimensão de atividade significativa da política externa brasileira. No entanto, paradoxalmente, essa dimensão foi pouco investigada. A literatura que a aborda diretamente é formada de uns poucos artigos (GÓMEZ, 1991; HOFFMANN, 2005; SANTISO, 2002; VILLA, 2004 e 2006; VIGEVANI et al, 2001). Tendo isso em vista, e tencionando contribuir para o debate do tema, elaboramos esta nota de pesquisa, na qual repertoriamos os elementos empíricos da ‘agenda democrática’ da política externa brasileira. Com base em compilações de dados e em cronologias (FOUTOURA, 1999; GARCIA, 2005; SANTISO, op. cit.), apresentamos as iniciativas e as medidas de promoção e de defesa da democracia efetivamente realizadas, indicando os instrumentos utilizados e os tipos de ação implementadas. (Por hora, não nos ocupamos das causas materiais e das razões estratégicas e ideológicas que motivaram a política externa brasileira a promover e a defender a democracia no exterior. Isso será feito em outro momento, num artigo subsequente.)
As iniciativas e medidas inscritas na agenda democrática da política externa brasileira contemporânea podem ser classificadas em dois grandes conjuntos: (1) iniciativas e medidas de defesa da democracia, que incluem (i) iniciativas e medidas contra golpes ou tentativas de golpes de Estado e (ii) iniciativas e medidas contra a manipulação de eleições; e (2) iniciativas e medidas de promoção da democracia, que incluem (i) declarações de posição ou de condição, promovidas ou apoiadas, (ii) proposta de criação ou adesão a dispositivos jurídicos, (iii) políticas nacionais com implicações internacionais relacionadas à ‘agenda democrática’, (iv) participação em missões de state-building da ONU, enviando apoio técnico à realização de eleições, e (v) criação de mecanismos regionais de fortalecimento da democracia.
Iniciativas e medidas contra golpes ou tentativas de golpes de Estado foram levadas a cabo em dez ocasiões.

(1) Entre 1991 e 1995, o governo brasileiro envolveu-se, por meio do CSNU, da OEA e do Grupo do Rio, nas gestões da comunidade internacional pela restauração da normalidade política e da regra democrática no Haiti e pela recondução ao cargo do presidente deposto, Jean Bertrand Aristide.
 (2) Entre 1992 e 1993, por meio da OEA e do Grupo do Rio, o governo brasileiro protestou contra o presidente do Peru, Alberto Fujimori, que, entre outros atos arbitrários, havia suspendido a Constituição e dissolvido o Parlamento.
 (3) Em 1993, por meio da OEA e na condição de membro do Grupo de Apoio a Contadora (de intermediação do processo de paz da América Central), o governo brasileiro condenou as medidas do então presidente da Guatemala, Jorge Serrano Ellías, que acabaram por restabelecer a autocracia no país.
 (4) Em 1996, por meio da OEA, do Grupo do Rio e do Mercosul, assim como fazendo uso da diplomacia tradicional e da diplomacia presidencial, o governo brasileiro engajou-se na resolução da crise institucional que abalou o Paraguai, então presidido por Carlos Wasmosy. (5) Em 1999 e (6) 2000, quando de outras duas crises, ambas precipitadas por maquinações do ex-General Lino Oviedo, exonerado por Wasmosy em 1996, o governo brasileiro atuou decisivamente, apoiando o estamento político paraguaio contra Oviedo e seus correligionários.
 (7) Entre 1998 e 1999, por meio do CSNU e da CPLP e acionando a diplomacia presidencial, o governo brasileiro jogou papel importante na reconciliação política, na reconstrução das instituições de governo e na democratização da Guiné-Bissau.
 (8) Em 2000, por meio da OEA, do Grupo do Rio e do Mercosul, o governo brasileiro protestou contra a derrubada do presidente democraticamente eleito do Equador, Jamil Mahuad, e exigiu o restabelecimento da regra constitucional.
 (9) Entre 2002 e 2003, por meio da OEA, do Grupo de Amigos da Venezuela, do Grupo do Rio, da Cúpula de Presidentes da América do Sul (futura CASA/UNASUL), assim como por meio da diplomacia tradicional e da diplomacia presidencial, o governo brasileiro atuou decisivamente pela recondução ao cargo do presidente democraticamente eleito, Hugo Chávez Frias.
 (10) Em 2003, por meio da CPLP, o governo brasileiro condenou a sublevação militar ocorrida em São Tomé e Príncipe e instou os revoltosos a restabelecer a ordem constitucional e a legalidade democrática.

Iniciativas e medidas contra a manipulação de eleições foram levadas a cabo em duas ocasiões.

(1) Em 2000, na OEA, o governo brasileiro questionou a validade das eleições parlamentares realizadas, sob condições suspeitas, no Haiti.
 (2) Também em 2000, na OEA e por meio do Grupo do Rio, o governo brasileiro protestou contra o modo como se conduziram as eleições à presidência do Peru e endossou as recomendações de reforma democrática feitas por missão técnica da OEA àquele país.

Quanto às declarações em prol da democracia no exterior, promovidas pelo próprio governo brasileiro ou por ele apoiadas, cabe ressaltar, pela relevância e pelas consequências práticas, as seguintes:

Declaração de Guadalajara da I Cúpula Ibero-Americana de 1991, que, entre outros objetivos, afirma o compromisso dos países participantes com a democracia e condena o autoritarismo;

Declaração Presidencial de Las Lenãs de 1992, sobre a indispensabilidade da plena vigência das instituições democráticas para o desenvolvimento do Mercosul;

II Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993, que consagra a inter-relação entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento.

Acordo-Quadro de Cooperação Inter-Regional entre o Mercosul e a União Europeia de 1995, que estipula como um dos seus elementos essenciais o respeito aos princípios democráticos e aos direitos humanos fundamentais;

Declaração de Quito do Grupo do Rio de 1995, sobre o compromisso do grupo com a democracia;

Convenção Interamericana contra a corrupção da OEA de 1995, a qual reconhece que a corrupção atenta contra a democracia representativa;

Declaração Presidencial sobre o Compromisso Democrático dos Países do Mercosul de 1996;

Declaração Constitutiva da CPLP de 1996, que evoca os valores da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos;

Declaração de Assunção do Grupo do Rio de 1996, sobre o compromisso do grupo com a democracia;

Declaração a respeito da Manutenção da Democracia do Grupo do Rio de 1997;

Declaração Política do Mercosul, Bolívia e Chile como Zona de Paz de 1998, a qual, pronunciada na AG da OEA, reitera que o fortalecimento da democracia representativa, o respeito aos direitos humanos e a garantia das liberdades fundamentais são elementos essenciais da garantia da paz e da segurança na região;

Compromisso de Cartagena com a Democracia do Grupo do Rio de 1998;

Declaração da Cidade de Québec da III Cúpula das Américas de 2000, que estabelece o compromisso democrático dos participantes do fórum;

Declaração de Brasília da I Cúpula dos Presidentes da América do Sul de 2000;

Declaração de San José da OEA de 2000, sobre direitos humanos e democracia;

Acordo-Quadro Mercosul-Comunidade Andina de 2002, que estipula que a vigência das instituições democráticas constitui um elemento essencial para o desenvolvimento do processo de integração regional;

Consenso de Guayaquil sobre Integração, Segurança e Infraestrutura para o Desenvolvimento, da II Cúpula dos Presidentes da América do Sul de 2002, que reitera e ressalta o compromisso das partes com a democracia e os princípios democráticos consagrados pelo direito internacional e em vigor no sistema interamericano;

Declaração de Santiago sobre Democracia e Confiança Cidadã da OEA de 2003;

Declaração sobre Segurança nas Américas da OEA de 2003, que reconhece que a democracia representativa é condição indispensável para a paz e a estabilidade do hemisfério e que as medidas de construção da confiança em matéria de segurança contribuem para a sua consolidação.

Convenção da ONU contra a Corrupção de 2003, que exorta as partes contratantes a combater a corrupção, tendo em vista os danos que ela provoca às instituições democráticas e ao Estado de Direito;

Declaração de Nuevo Léon da Cúpula Extraordinária das Américas de 2004, que reitera o compromisso democrático estabelecido na Cúpula do Québec e afirma a interdependência entre crescimento econômico, desenvolvimento social e governabilidade democrática;

Declaração de Cusco da III Reunião de Presidentes da América do Sul de 2004, que consagra, entre outros valores compartilhados pela CASA, a democracia, os direitos humanos e a liberdade;

Declaração de Ayacucho da III Reunião de Presidentes da América do Sul de 2004, que, entre outras coisas, afirma o compromisso da CASA com a efetiva aplicação da Carta Democrática Interamericana, assim como com a promoção e a defesa deste mecanismo.

            No subgrupo dos mecanismos jurídicos, que o governo brasileiro propôs, promoveu ou a eles aderiu, estão incluídos:

A Resolução 1080 da OEA de 1991, sobre a proteção da democracia no hemisfério;

O Protocolo de Washington da OEA de 1992, que reafirma o compromisso da organização com a promoção, a proteção e a consolidação da democracia representativa no hemisfério e prevê a possibilidade de aplicação de sanções aos desvios;

O Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile de 1998, que cria a cláusula democrática que vincula os membros plenos e associados do bloco;

A Resolução 1753 da OEA, sobre a necessária credibilidade do processo eleitoral;

A Carta Democrática Interamericana da OEA de 2001, que reconhece que a democracia representativa é indispensável à estabilidade, à paz e ao desenvolvimento da região; estipula que um dos propósitos da organização é promovê-la, respeitando-se o princípio da não intervenção; e prevê a suspensão temporária do Estado-membro que não respeitar o compromisso democrático.

            Quanto às políticas nacionais com implicações internacionais, cabe citar duas:

(1) A Política de Defesa Nacional de 1996, que na parte introdutória relaciona a democratização regional com a reversão do padrão de rivalidade e com a redução da ocorrência de conflitos.
 (2) O I Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996, que contém seção reservada ao tratamento das ações internacionais de promoção e defesa dos direitos humanos.

            O subgrupo da participação do Brasil em missões de state-building da ONU engloba o envio de peritos e observadores eleitorais. Desde 1992, o Brasil enviou pessoal técnico à África do Sul, a Angola, ao Camboja, ao Chipre, ao Congo-Zaire, a El Salvador, ao Haiti, a Moçambique, ao Oriente Médio e ao Timor-Leste.
Por fim, registramos a vertente mais recente de atuação do Brasil em prol da democracia no exterior, que é a criação de mecanismos regionais de fortalecimento do regime democrático de governo. Em 2004, o governo brasileiro, junto dos seus sócios no Mercosul, criou a Reunião das Altas Autoridades nas Áreas de Direitos Humanos e o Centro Mercosul de Promoção do Estado de Direito. Em 2006, foi criado o Observatório da Democracia do Mercosul.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTOURA, P. R. C. T. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1999.
GÓMEZ, J. M. Democracia Política, Integração Regional e Contexto Global na América Latina (Repensando Alguns “Nós Problemáticos”). Contexto Internacional, vol. 13, n° 2, p. 227-245, 1991.
GARCIA, E. V. Cronologia das Relações Internacionais do Brasil. 2° ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005.
HOFFMANN, A. R. Avaliando a influência das organizações regionais de integração sobre o caráter democrático dos regimes de seus Estados-partes: O caso do Mercosul e o Paraguai. Cena Internacional, ano 7, n° 2, p. 83-92, 2005.
SANTISO, C. Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira. Contexto Internacional, vol. 24, n° 2, p. 397-341, 2002.
VILLA, R. D. Brasil: Política externa e agenda democrática na América do Sul. Trabalho apresentado no 4° Encontro Nacional da ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política. Área: Relações Internacionais. Painel: Política Externa Brasileira. 21-24 de julho de 2004 – PUC – Rio de Janeiro.
_____. Política externa brasileira, capital social e discurso democrático na América do Sul. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21, n° 61, p. 63-89, 2006.
VIGEVANI, T.; MARIANO, K. P.; OLIVEIRA, M. F. Democracia e atores políticos no Mercosul. In: SIERRA, G. (Org.). Los rostros del Mercosur. El difícil camino de lo comercial a lo societal. CLACSO, 2001. Disponível em: .

 Sítios eletrônicos

ALADI <http://www.aladi.org/>
CAN
CASA/UNASUL < http://casa.mre.gov.br/>
Mercosul < http://www.mercosur.int/>
MRE < http://www.mre.gov.br/>
OEA < http://www.oas.org>

George Sturaro é mestrando em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e graduado em Relações Internacionais no UNICURITIBA



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