Mundão
Resenha de “O poder global e a nova geopolítica das nações”, de José Luís Fiori. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
George Wilson dos Santos Sturaro
Em O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações, José Luís Fiori tem o mérito de aproximar e, em alguns pontos, integrar as abordagens histórico-materialista e estratégico-realista das Relações Internacionais. O autor maneja o encaixe das abordagens concorrentes numa “teoria da acumulação do poder e da riqueza”, base de toda elaboração posterior, que irá culminar numa “teoria do poder global”. Assim fazendo, Fiori combina explanação histórica e determinação estrutural com análise de conjuntura, estratégia e tática, preenchendo espaços vazios da Teoria das Relações Internacionais.
Fiori parte da premissa de que as dimensões política e econômica determinam-se reciprocamente, sem que haja hierarquia ou precedência entre elas. Constata isso logo no Prefácio1 da obra, onde resgata a discussão entre as escolas da Economia Política Internacional. Lá trava diálogo pontual com os principais teóricos do “sistema-mundo”: André Gunder Frank, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi; do “imperialismo”, John Hobson, Rudolf Hilferding, Nicolai Bukharin e Vladimir Lenin; e da “teoria da estabilidade hegemônica”, Charles Kindleberger, Robert Gilpin e Robert Cox. Sociólogo do desenvolvimento de inspiração estruturalista, Fiori situa-se na tradição teórica do “sistema mundial moderno”; entretanto, situa-se com reservas, diferindo, como se verá adiante, dos pensadores expoentes dessa escola em pressupostos e diagnósticos decisivos. Depois segue em retrospecto o curso do tempo da “longa duração” rumo às origens da “economia-mundo” de Fernand Braudel. Retorna até o momento em que Karl Marx identifica a passagem do “modo de produção feudal” para o “modo de produção capitalista”, quando então se formavam os primeiros Estados nacionais, no interregno que vai do século XIII ao XVI. É nesse período fulcral da história ocidental que o autor identifica o embrião da simbiose única que, criadora do “milagre europeu”, faria da Europa o centro do poder e da riqueza mundial dos séculos seguintes: a união do poder político territorial com o capital privado.
Tal simbiose dará à luz as entidades que Fiori denominou “Estados-economias nacionais”, verdadeiras máquinas de conquista militar e expansão econômica, sobre cuja potência e capacidades já haviam refletido Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Conforme o autor, serão esses Leviatãs, governados por príncipes associados às burguesias nacionais, que irão encarregar-se da tarefa de expandir as fronteiras territoriais e incrementar o comércio e as finanças das nações da Europa, num movimento expansivo e inexorável que terá abarcado o globo todo antes do fim do século XIX. Fiori constata que o impulso e o dinamismo dessa expansão vêm da competição militar e econômica entre os Estados. Dialogando com Von Clauzewitz, o autor constata, ademais, que a guerra entra na arena quando os capitais sofrem bloqueios, continuando a política “por outros meios”. Como bem observaram Charles Tilly e Norbert Elias, com quem o autor igualmente dialoga, a guerra vem a se constituir no traço característico da história do sistema internacional e em elemento dinamizador do próprio “processo civilizatório”. O dado que explica a perenidade da guerra e da competição econômica seria o que Fiori denomina “pressão competitiva”.
De acordo com Fiori, na medida em que toda relação de poder político é assimétrica e está baseada num “jogo de soma zero”, a própria relação termina por exercer “pressão competitiva” sobre si mesma. Levada ao extremo das consequências, a “pressão competitiva” entre os Estados poderosos, em busca de maiores parcelas de poder, e Estados fracos, em defesa de sua independência e sobrevivência, torna-se “pressão sistêmica”. Em decorrência da pressão do sistema, os Estados irão inevitável e incansavelmente competir pelas posições econômicas e políticas de seus contendores.
Segundo o raciocínio do autor temos que: a “manutenção do poder” leva à “acumulação de poder”, e esta, à “acumulação de riqueza”, dado que o núcleo do poder assenta-se sobre bases materiais. Essas bases poderiam ser obtidas à força ou por via da produção, do comércio e das finanças, ou de uma combinação de meios coercitivos e econômicos, o que tem sido mais comum ao longo da história, tal como o demonstram o colonialismo e o imperialismo. Nesse caso, a “pressão competitiva” faria com que as classes governantes e as classes capitalistas, ainda que motivadas por interesses distintos – e por vezes divergentes – somassem esforços no incremento do poder nacional, projetando força e internacionalizando a economia.
Para Fiori, nos tempos modernos, a conquista militar de territórios fiscais e coloniais teria dado lugar à conquista de “territórios econômicos supranacionais”, onde os “Estados-economias nacionais” impõem suas moedas e seus capitais privados ocupam posições monopolistas que lhes rendem lucros extraordinários. Os Estados que dessa forma se conseguem impor tornam-se “Estados-economias imperiais”. O exemplo mais eloquente desse fenômeno de projeção imperial do poder nacional seria os EUA. O “poder global” desse país estaria assentado, explica-nos o autor, sobre as bases de um vasto “território econômico supranacional” que após o fim da Guerra Fria passou a abarcar todo o globo. A “globalização econômica” que vem avançando desde as últimas décadas do século XX nada mais seria, continua o autor, do que a expansão do “território econômico supranacional” dos EUA.
Isso fica claro se tivermos em conta os elementos que, conforme Fiori, constituem e possibilitam o novo surto global de internacionalização do sistema capitalista. (1) As tecnologias de comunicação, informação e logística que viabilizaram a formação de um mercado financeiro global operante em tempo real e a descentralização dos processos produtivos foram desenvolvidas nos EUA. (2) As multinacionais dos EUA foram as pioneiras do processo e continuam figurando entre os maiores e mais importantes atores da globalização. (3) A moeda que serve de referência contábil e meio de pagamento do sistema financeiro internacional é o dólar norte-americano, sob controle de autoridade monetária norte-americana. (4) Os EUA detêm poder de decisão de última instância nos principais foros e regimes internacionais que estabelecem as regras e procedimentos de acordo com os quais os mercados são abertos, desregulamentados e privatizados.
Com relação à estabilidade do sistema internacional, Fiori defende que não são as diferentes geometrias de poder (unilateral, bilateral, multilateral) que a garantem, mas a ameaça de um grande conflito entre as potências que conformam o “núcleo dominante” do sistema. Porém, ressalva que, mesmo que a potência hegemônica não tenha rival a sua altura, a estabilidade sistêmica jamais se pereniza, pois a posição de hegemonia é sempre transitória. Isso ocorre porque a potência hegemônica, no afã de aumentar o seu poder, movida pelo imperativo da “competitividade sistêmica”, acaba por se desvencilhar das regras e instituições que sustentavam sua supremacia, mas que depois se tornaram constrangimentos. Como exemplo desse comportamento “autodestrutivo”, Fiori menciona os EUA e a crise que essa potência hegemônica provocou ao invadir o Iraque em 2003, na Segunda Guerra do Golfo, à revelia da ONU. O decreto de falência do sistema de convertibilidade ouro-dólar de 1973 é outro exemplo expressivo de rompimento com compromissos internacionais inconvenientes citado pelo autor.
É nesse ponto que Fiori se afasta de Wallerstein e Arrighi, a eles se opondo diametralmente. Wallerstein e Arrighi preveem o declínio do poder dos EUA e, em sequência, o colapso do “sistema-mundo”. Por seu turno, tal como Paul Kennedy, Fiori admite que, quando perdem posições econômicas, os Estados inevitavelmente perdem parcela da capacidade de sustentar a supremacia militar. Todavia, ressalva o autor, esse fato em nada altera o funcionamento do “sistema-mundo”, um sistema de acumulação de poder e riqueza em constante expansão, dinamizado pela competição econômica e pelo conflito armado, marcado pela ascensão, queda e sucessão de impérios e hegemonias.
Fiori prossegue a construção de seu “sistema mundial moderno” com a identificação de três categorias de “Estados-economias nacionais” em posição inferior na hierarquia internacional. São elas: (1) a dos Estados que se desenvolvem sob os auspícios das potências centrais (“desenvolvimento associado”); (2) a dos Estados que adotam a estratégia do catch up (alcançar o líder); e (3) a dos Estados da “periferia”, que fornecem insumos para as potências do “centro”.
Já concluindo, identifica também cinco transformações estruturais e de longo prazo operantes no início do século XXI: (1) a expansão do sistema internacional com a integração de novos Estados soberanos; (2) o deslocamento do eixo articulador da economia mundial para a Ásia (“eixo sino-americano”); (3) o crescimento da importância da China como centro articulador e “periferizador” da economia mundial; (4) a consolidação do sistema monetário internacional do “dólar flexível”, a aceleração da globalização e a expansão do “poder global” dos EUA; e (5) o assentamento de um eixo geopolítico da competição entre EUA e China.
Num balanço geral, a teoria de Fiori, crê o resenhista, é dotada de consistência, coerência e rigor. Tem grande força explicativa, e a história contemporânea, com seus desenvolvimentos recentes, é ponto a seu favor.
1 Com 27 páginas (13-40), o Prefácio desempenha do papel de marco teórico da obra.
George Wilson dos Santos Sturaro é Mestre em Relações Internacionais pela UFRGS e professor do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba. E-mail: [email protected]
Artigo publicado na Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
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