Quando o realismo é insuficiente: a ação das ONG no século XXI
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Quando o realismo é insuficiente: a ação das ONG no século XXI


           Na foto: O navio ambientalista Steve Irwin (direita) tenta intimidar o navio arpoador Shōnan Maru 2 (esquerda) com uma tentativa de abalroamento.


Nicolas Maia


"Os únicos atores relevantes são os Estados nacionais", segue o mantra realista. Mas até que ponto este mote corresponde à realidade do século XXI? Frequentemente imagina-se entre os realistas que a influência de uma organização não governamental perante um Estado nacional tenha efeito mínimo ou nulo na condução de sua política externa, devido ao poder incomensurável entre as partes. Por este motivo, ONGs têm sido desconsideradas como atores importantes no cenário internacional por acadêmicos realistas.
De fato, a influência de grupos como o Greenpeace sobre atores estatais é discutível e verificadamente fraca em lugares onde a opinião pública tem menor força, como em países com governos autoritários ou em sociedades pouco mobilizadas politicamente.
Acontecimentos recentes, entretanto, colocaram em xeque estes pressupostos de longa data. Ao longo dos últimos sete anos, uma ONG que vem ganhando cada vez mais proeminência no movimento ambientalista e na mídia devido à polêmica que a cerca, a Sea Shepherd Conservation Society, conseguiu o que muitos teóricos julgavam impensável: levar à falência toda uma indústria e sair vitoriosa de um contencioso contra um governo nacional.
O foco das ações da Sea Shepherd tem sido a caça ilegal de baleias na costa da Antártica por navios baleeiros, atividade esta subsidiada pelo Estado japonês. Devido ao depauperamento de espécies inteiras, em 1986 foi imposta no âmbito da Comissão Baleeira Internacional (CBI) uma moratória à caça de baleias-de-minke, baleias-comum e jubartes. Porém, a moratória deixou aberta uma brecha, ao permitir a caça para fins científicos.
Esta brecha, que possibilitou aos japoneses continuar abatendo baleias indiscriminadamente, somando-se ao fato de que em décadas de pesquisa, só um artigo científico tivesse sido produzido, levou à condenação unânime de países e ONGs ao programa baleeiro japonês na CBI.
Neste contexto, a Sea Shepherd se apresentou como uma espécie de grupo justiceiro. Paul Watson, fundador e líder do grupo, em diversas ocasiões deixou claro que seu objetivo não é o protesto, e sim o cumprimento do Direito Internacional, agindo sob a égide da Carta das Nações Unidas para a Natureza, que, segundo Watson, nos artigos 21-24 legitima e dá a indivíduos e organizações a competência e o poder para fazer valer os objetivos da Carta.
As ações da Sea Shepherd, no entanto, não se limitaram à simples intervenção na caça baleeira. Em diversas ocasiões, a ONG foi fonte de atrito diplomático entre o Japão e outros países, como a Austrália, Nova Zelândia e os Países Baixos.
Em 2008, por exemplo, Watson arquitetou um plano para que dois ativistas subissem a bordo de um navio da frota baleeira e então lançar a notícia para vários jornais no mundo de que ambos estariam sendo presos como reféns pelos japoneses, numa tentativa de trazer a atenção pública mundial para o que vinha acontecendo na Antártica.
O que se seguiu foi um impasse para a diplomacia australiana, que se viu na obrigação de resgatar um dos ativistas presos, que era cidadão australiano, ao mesmo tempo em que tentava evitar um mal-estar em sua relação com o Japão.
Convém ressaltar que sete anos de assédio e intervenção física pela Sea Shepherd trouxeram resultados concretos: uma redução a cada ano maior na cota de baleias capturadas fez com que a indústria baleeira japonesa terminasse quase todos os anos deficitária, o que a colocou numa espiral crescente de dívidas com o governo, que subsidiava as expedições. Isso, somado ao maremoto de 2011 em Sendai, que teve um impacto catastrófico na economia japonesa, definitivamente sepultou toda a indústria, gerando assim uma das maiores vitórias do movimento ambientalista nas últimas décadas.
A vitória efetiva de uma ONG sobre o governo japonês é um feito sem precedentes, que põe em questão a visão tradicional realista sobre atores não-estatais e testa os limites do sistema internacional, que frequentemente se vê paralisado e incapaz de responder a ameaças à sua soberania, personificadas por grupos individuais.


Nicolas Maia é aluno do quarto período do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

Este texto é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não Adaptada (CC-BY-SA)





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