Mundão
A legitimidade do Terror
Por Bruna FritzenOs atentados de 11 de Setembro já completaram seu décimo aniversário e o mundo continua focado na tarefa, um tanto inútil, de demonizar os indivíduos apontados como responsáveis pela sua execução. Essa cegueira generalizada impede uma análise do cenário geral e um reconhecimento de que as consequências do ataque se sobrepõem a este e que atribuir autoria, de forma total, é um empreendimento muito mais complexo do que parece. Historicamente, acontecimentos como o atentado de 2001 nos Estados Unidos (a destruição por fogo do Reichstag alemão, o episódio em Gleiwitz ou o bombardeamento americano no Golfo de TonKin) apresentam um fator comum: serviram para legitimar ações unilaterais e ilegais por parte dos governos - recrudescimento da máquina militar, invasão territorial, guerra e supressão de direitos individuais. Os ataques contras as Torres Gêmeas e o Pentágono serviram como justificativa para a Guerra ao Terror, as guerras do Iraque e Afeganistão, o terrorismo ideológico e a submissão da sociedade civil ao controle militar, mesmo que indiretamente, ferindo tanto o Direito Internacional da Carta da ONU, como o ordenamento jurídico americano e os direitos humanos de forma geral. Parece-me, portanto, que focar somente nos culpados do atentado em si acaba por ofuscar os autores de crimes muito piores.
Após o fim da Guerra Fria surgiu no meio político norte-americano uma direita radical neoconservadora, descrente do multilateralismo e do direito internacional, e cuja agenda tinha estreitas relações com os interesses corporativos. Nas duas últimas décadas, as companhias petrolíferas, a indústria militar e os bancos americanos, amparados pelo sistema monetário - e consolidadores deste -, passaram a participar cada vez mais ativamente do processo decisório dos Estados Unidos, até um estágio onde as esferas econômica e política se tornaram absolutamente indissociáveis. A estratégia política dos neoconservadores - e dos conglomerados corporativos - era adotar uma política internacional mais agressiva e unilateral e estabelecer e proteger uma ordem mundial que assegurasse o acesso americano a recursos naturais vitais (fontes energéticas especialmente). Um dos pontos mais importantes da doutrina neoconservadora, no entanto, recaía sobre a segurança nacional, e podia ser resumido em basicamente três direções: promoção dos princípios morais americanos em escala global, investimentos maciços na indústria militar (agenda de guerra) e maior controle do Estado sobre a sociedade civil. Eram evidentes, também, os interesses - geopolíticos econômicos e estratégicos - deste grupo no Oriente Médio e na Eurásia: era preciso garantir acesso ao petróleo, proteger os oleodutos, conter a ascensão de potências locais, e posicionar bases militares americanas de forma a impedir a consolidação de um poder que prejudicasse a agenda corporativa. Foi durante o governo Bush, portanto, que todos estes planos foram colocados em prática: militarização, na esfera internacional, e estado policial na esfera nacional. E foram os atentados de 11 de Setembro de 2001, que apoiaram o plano neoconservador e legitimaram a Guerra ao Terror.
Pouco tempo após os ataques, a Casa Branca declarou guerra contra o terrorismo e enviou tropas americanas para o Oriente Médio. A ação militar passou a ser justificada, então, como legítima defesa sob o disfarce de uma guerra preemptiva¹: os Estados Unidos haviam sido atingidos e, frente à "ameaça iminente" de um novo ataque, a intervenção pelo uso da força seria o único meio de garantir sua defesa pessoal. A partir daí (e até hoje), a campanha propagandista passou a ser a ferramenta utilizada para manter as várias instituições da sociedade civil em acordo com a política americana para "combater" o terrorismo. Ficou por conta da máquina de propaganda aliar as figuras de Bin Laden e Saddam Hussein aos atos terroristas e a Al Qaeda - fabricada e demonizada, desde sempre, pelo próprio governo norte-americano - e aponta-los como instrumentos desestabilizadores; assim como difundir as acusações de que o Iraque, por exemplo, possuía armas de destruição em massa. A expectativa abstrata e constante de um ataque, pregada pela máquina propagandista em consonância ao ponto de vista corporativo, provoca um efeito legítimo na sociedade civil: o medo e o terror. Esse terrorismo ideológico é utilizado como "matéria-prima" para a produção comercial de certa forma de "dissidência controlada"², limitada e manufaturada, ou seja, um conjunto de valores e opiniões manipulados que suportam a agenda política. O evento em 2001 serviu então como catalisador de um processo já anteriormente iniciado e possibilitou a execução da "Doutrina Bush" e da estratégia de Segurança Nacional neoconservadora.
A invasão do Afeganistão, semanas após os ataques, e a posterior intervenção no Iraque, ferem alguns princípios da Carta da ONU. O Artigo 51º, que trata especialmente do direito à legítima defesa "individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas" foi reinterpretado pelos Estados Unidos com o intuito de justificar uma ação militar tipicamente preventiva, com base em um risco futuro e hipotético (na verdade, a ameaça seria ilegítima e não validaria o uso da força). No caso do Iraque, Saddam Hussein foi identificado pelo governo americano - e de novo, pela propaganda - como um "inimigo perigoso" possuidor de armas nucleares e a guerra passou a ser tolerável pois impediria um possível desequilíbrio de poder ou que tais armas caíssem em mãos terroristas, ameaçando a liberdade democrática de forma global. A marginalização da legalidade internacional foi consagrada com o Diretivo Presidencial nº 17, em 2002, que atribuía ao Estado o direito de usar todos os meios necessários para garantir a sua proteção, sem necessidade de uma prévia autorização da ONU ou de qualquer tipo de deliberação multilateral. As violações também não se concentraram somente no âmbito do direito internacional: a nova política de Segurança Nacional instaurou o estado policial dentro do próprio território americano. A Doutrina Bush pregava a ideia de que o terrorismo é uma ameaça invisível, constante e imprevisível e só pode ser evitado através de instrumentos preventivos muito rígidos, como a militarização de algumas instituições da sociedade civil. Em nome da proteção de seus cidadãos, o governo dos Estados Unidos decretou medidas, como o Patriot Act e o Military Comissions Act, legalizando a quebra de sigilo, a prisão ou deportação arbitrária, o controle estatal sobre os meios de comunicação civil, a instalação de tribunais militares para julgarem os suspeitos de crimes relacionados ao terrorismo e até mesmo a tortura. O projeto de lei 1959 (Violent Radicalization and Homegrown Terrorism Prevention Act of 2007), que acabou não sendo votado pelo Senado, pretendia criminalizar todo tipo de dissidência, subversão ou manifestação contrária à política externa e interna do governo Bush.
Fica claro, portanto, que o atentado contra o Pentágono e o World Trade Center, assim como suas consequências no Oriente Médio, não ferem os direitos humanos somente no que se refere ao número de mortos e feridos. A preocupação em condenar os executores dos ataques, ao desviar o foco crítico da sociedade civil, acaba legitimando a agenda política unilateral, incentivando o uso da força de forma preventiva e permitindo a violação de outros direitos. Nos Estados Unidos, onde o controle político é dependente do interesse do capital e centralizado pelo sistema corporativo, a configuração política superficial (alternância entre republicanos e democratas) pouco altera as prioridades da agenda política. A criminalização do Estado, a militarização da sociedade civil e a subjugação dos direitos continuarão a existir enquanto a esfera política continuar sendo rigidamente controlada pelas regras do interesse econômico.
¹ - PALÁCIOS JUNIOR, A. As Guerras Preventivas Como Continuação da Política. I Simpósio em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). 2007.
²- CHOSSUDOVSKY, MICHEL. America's "War on Terrorism".
Referências: BACEVICH, Andrew J. The New American Militarism. Oxford University Press. 2005.
CHOSSUDOVSKY, MICHEL. Guerres et Mondialisation: A Qui Profite Le 11 Septembre? Serpent a Plume, 2002
CHOSSUDOVSKY, MICHEL. America's "War on Terrorism". Pincourt, Quebec: Global Research, 2005
FINGUERUT, Ariel. O Pensamento Neoconservador e a Política Externa de George
W. Bush: Percpeções da América Latina a parir das crises do Equador e da Bolivia.
Monografía disponível na biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de
Araraquara. 2005.
PRESTOWITZ, Clyde. Rogue Nation. Basic Book, 2003
Gray, Collin S.. The implications of preemptive and preventive war doctrines: A
Reconsideration. U.S. Army College: Strategic Studies Institute. 07/2007.
Bruna Fritzen é estudante do quarto período do curso de Relações Internacionais no Unicuritiba.
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