As consequências do processo eleitoral na França seguem o padrão europeu: cada vez mais, a crise no continente toma rumos imprevisíveis. As eleições presidenciais no país, cujo segundo turno ocorre neste domingo (6), foram uma das mais acirradas de todos os tempos. Nicolas
Sarkozy, atrás de um segundo mandato, enfrenta François Hollande, socialista cuja
candidatura só foi possível após a inesperada queda em desgraça do antigo principal líder de
seu partido, o agora finado politicamente Dominique Strauss-Kahn.
O desenrolar desse processo, com todas as suas idas e vindas, são marcantes. A França, juntamente com a Alemanha, é o mais importante país da Zona do Euro, evidenciou através da disputa política que as querelas na arena política nacional ficaram muito mais acirradas durante a crise. Como consequência disso, torna-se cada vez mais clara a ideia de que a Europa vive uma forte crise política, muito mais real do que deixam transparecer as análises puramente econômicas sobre o continente.
Transportada ao contexto europeu, vê-se o retrato da disputa entre diferentes tendências políticas no nível nacional virar a regra em todo o Velho Mundo: Mario Monti, primeiro ministro italiano, tem
dificuldades em colocar em prática uma agenda de reformas que aponte um caminho diferente do que aquele em que trilha o país nos últimos anos - e que já levou a indesejados destinos seus vizinhos no Mediterrâneo; Mariano Rajoy, na Espanha, enfrenta a perda da credibilidade do seu país nos mercados internacionais como consequência de sua grande dívida e contração econômica. Até a Holanda, um dos poucos países na Zona do Euro classificado com status AAA, enfrenta séria dificuldade: desde o fim de abril, seu primeiro ministro é demissionário e novas eleições estão marcadas para 12 de setembro. O motivo para a queda do governo neerlandês: falta de entendimento na coalizão governamental sobre as áreas em que o gabinete terá de cortar gastos para atender as ordens da União Europeia. A ironia: a própria Holanda é proponente e um dos mais rígidos fiscais do cumprimento das metas estabelecidas para todos os membros da Zona do Euro.
Em comum, pois, a dificuldade que os políticos têm em dissociar o discurso de austeridade da prática perdulária; o desafio que todas as elites políticas têm em opor seus programas de recuperação financeira a pressões populares e de oposições ao status quo ante, que havia tornado a Europa no centro mundial do bem-estar social.
"Nicolas Sarkozy perdeu as eleições no primeiro turno apesar de ter criado muitos programas sociais importantes, como a extensão da bolsa aos universitários e a vinculação do aumento da aposentadoria aos índices de inflação", avalia Chryst Passard, acadêmico de Direito na Université Montesquieu da cidade de Bordeaux, sul da França. "O problema é que temas mais de direita, como barreiras à imigração, a identidade católica de muitos eleitores no país, a defesa da família e a identidade nacional levaram muitos eleitores a optarem por Marine Le Pen, da Frente Nacional, que obteve 17% dos votos; isso sem contar os mais de 10% obtidos pelos eurocéticos da extrema radical, que são contra a própria existência da União Europeia. Alie-se ainda o fato de que Sarkozy tenha nomeado vários ministros de esquerda em seu governo e tem-se a tragédia completa", diz o jovem, que é membro da União Nacional Interuniversitária francesa e membro da UMP, partido de Sarkozy.
Do lado socialista, o picolé de chuchu François Hollande conseguiu emplacar um discurso moderado, ainda que gastador. A revista The Economist, ao abrir seu apoio à reeleição de Sarkozy logo após os resultados do primeiro turno, frisou que, pelos cálculos do próprio socialista Hollande, suas propostas de reformas custarão 20 bilhões de euros. O que preocupa o semanário: Hollande planeja arrecadar esse dinheiro apenas aumentando impostos e não menciona a criação de riqueza através da produção e da competitividade em nenhum momento.
França também enfrenta baixarias nas eleições
Para uma nação ainda rica mas com as agruras de uma crise econômica inevitável batendo às suas portas, nada mais natural do que a população francesa mais vulnerável recear fortes mudanças. Erin Sheek, norte-americana residente em Paris na casa do casal Hamid e Souad Saoudi, nascidos na Argélia, também falou à Revista Voto. "A família que me recebe em Paris imigrou à França nos anos 1980. Votaram todos em Hollande não apenas por sua oposição a Sarkozy em relação à sua política na área de imigração, mas porque acreditam na ideia socialista de igualdade. Acham, por exemplo, que se uma pessoa pobre não pode pagar pelo seu seguro saúde, nada mais justo que aqueles que têm condições banquem o sistema", relata Erin, que é acadêmica de História na DePauw University, nos EUA, e cursa Estudos Europeus e Francês na Universidade Paris X, de Nanterre.
A esquizofrenia da campanha de Sarkozy, com a busca de eleitores desde a extrema direita até a esquerda para buscar compensar a derrota no primeiro turno, somada às propostas de bem-estar social sem criação de renda do socialista Hollande, demonstraram, a partir de um dos corações econômicos da Europa, que a crise de sua União está longe de ser apenas financeira e orçamentária. O baixo nível de entendimento político entre suas elites, a começar pelas de países-chave do bloco, tem agravado ainda mais um cenário já muito sinistro e de desenrolares imprevisíveis. Independentemente de quem estiver no poder.
Disponível em: http://www.revistavoto.com.br/site/noticias_detalhe.php?id=3283&t=Um_continente_de_imprevisibilidades