Mundão
O projeto do regime de proteção da democracia da Unasul: potencialidades e debilidades
George Sturaro
No dia 26 de novembro do corrente, foi assinado, pelos doze países-membros da Unasul, o Projeto de Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia. Por um lado, o documento prevê a instituição de um ambicioso regime regional de proteção da democracia, com um amplo leque de dispositivos dissuasórios. Por outro, o documento não estabelece a que forma de democracia que visa proteger, nem é suficientemente detalhado na caracterização das ameaças à ordem democrática, seja ela qual for. Essa imprecisão conceitual compromete a eficácia do regime, a despeito dos amplos meios a sua disposição para proteger a democracia.
Uma vez instituído, o regime sul-americano de proteção da democracia será o mais bem equipado do mundo. Além de medidas soft e hard convencionais, tais como a realização de bons ofícios e de gestões diplomáticas (Artigo 5) e a suspensão do direito do Estado afetado de participar do bloco (Artigo 4), as quais constam, por exemplo, no Protocolo de Ushuaia do Mercosul e na Carta Democrática Interamericana da OEA, o Projeto de Protocolo da Unasul prevê um conjunto de medidas inéditas. Diante de ameaças à ordem democrática, a Unasul poderá:
I. fechar total ou parcialmente as fronteiras terrestres com o Estado afetado e suspender e/ou limitar o comércio, o tráfego aéreo e marítimo, as comunicações e a provisão de energia, serviços e bens;
II. promover a suspensão do Estado afetado no âmbito de outras organizações regionais e internacionais;
III. promover, junto a terceiros países ou blocos, a suspensão dos direitos e benefícios do Estado afetado, derivados de acordos de cooperação a que este tenha aderido (Artigo 4).
O potencial dissuasório dessas medidas é enorme. Se antes a ruptura da ordem democrática significava, na prática, a cessação dos benefícios econômicos derivados da integração regional (HOFFMAN, 2005), daqui para frente ela poderá significar a cessação de todo o intercâmbio econômico com os países vizinhos, ou mesmo com o mundo, em razão do fechamento das fronteiras. Da mesma forma, se antes o Estado afetado poderia ser marginalizado da política regional (PEVEHOUSE, 2005), daqui para frente ele poderá ser posto em ‘quarentena’, sendo suspenso não apenas da Unasul, mas também do Mercosul, da CAN, do Grupo do Rio ou da OEA, se for o caso, assim como de arranjos de cooperação bi-regional, os quais pressupõem filiação a blocos regionais. O Estado afetado poderá, ademais, ter o seu relacionamento bilateral com terceiros países ou blocos gravemente abalado, devido às pressões diplomáticas que a Unasul fará para isolá-lo da comunidade internacional. Medidas dessa natureza foram consideraras recentemente, na Declaración de Buenos Aires sobre la situación en Equador, de 1° de outubro deste ano. Ao que parece, a mera hipótese de que poderiam ser aplicadas contribuiu para a resolução da grave crise político-institucional que ocorreu no país. Em tese, a Unasul pode elevar os custos político-econômicos da conduta desviante a um patamar que nenhum outro organismo regional ou internacional alcança.
O elo débil do regime reside na definição do escopo de aplicação das medidas dissuasórias. O Projeto de Protocolo da Unasul estabelece que medidas serão tomadas em caso de: (i) ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, (ii) violação da ordem constitucional e (iii) qualquer outra situação que ponha em risco o exercício legítimo do poder e a vigência dos valores e princípios democráticos. Em maior ou menor medida, os casos previstos estão vagamente definidos. Está claro que serão tomadas medidas contra golpes ou tentativas de golpe de Estado no sentido clássico, com recurso à força e à violência. Não está claro, no entanto, se o mesmo será feito diante de situações tais como o ‘golpe branco’, a exemplo daquele que, disfarçado de impeachment, depôs o ex-presidente equatoriano Abdalá Bucaram em 1997, ou diante de ameaças de “segunda geração”, a exemplo dos casos de manipulação eleitoral que ocorreram no Haiti e no Peru em 2000 (SANTISO, 2002; VILLA, 2003). Tampouco está claro se poderão ser tomadas medidas contra Estados onde os direitos civis básicos estejam em risco, tais como a Venezuela de Chávez, onde, apenas em 2008, foram reportadas 186 violações à liberdade de expressão, dentre elas 52 casos de agressão física e 47 de intimidação (FREEDOM HOUSE, 2009). Se não configuram ruptura abrupta da ordem democrática, essas situações certamente configuram transgressão das regras, dos valores e dos princípios que balizam o jogo democrático. Na sua ocorrência, serão aplicadas medidas dissuasórias, ou não?
Um outro problema, intimamente relacionado ao anterior, refere-se ao conceito de democracia presente no Projeto do Protocolo da Unasul. O documento não estabelece a que forma de democracia visa proteger, como fizeram, por exemplo, o Comunicado de Brasília da I Reunião de Presidentes da América do Sul de 2000 ou a Carta Democrática Interamericana da OEA de 2001, que declararam de forma explícita a opção das partes signatárias pela ‘democracia representativa’. Esse ponto é crucial, na medida em que a caracterização das ameaças à ordem democrática depende do conceito de democracia que está em questão. Uma situação que caracterize ameaça à democracia representativa talvez não tenha a mesma conotação no âmbito da democracia participativa, à exceção, é claro, do caso-limite do golpe de Estado. As práticas políticas numa e noutra forma de democracia podem ser consideravelmente distintas, e o que é inaceitável numa pode ser rotina noutra. Como agir diante da polivalência? O Projeto de Protocolo da Unasul, bloco regional integrado tanto por democracias representativas quanto por democracias participativas, curiosamente (ou deliberadamente?) é insensível às diferenças apontadas e às suas implicações. Em razão disso, corre o risco de cair em contradição e de perder credibilidade, o que, aliás, já parece estar ocorrendo (REVISTA VEJA, 2010).
Em suma, as potencialidades do projeto de regime de proteção da democracia da Unasul são virtualmente anuladas pelas suas debilidades. O arsenal de medidas do bloco é amplo e o seu potencial dissuasório, enorme. Os custos político-econômicos que se pode impor aos Estados desviantes são, de fato, proibitivos. Todavia, a imprecisão conceitual acerca da forma de democracia a que se visa proteger, assim como do que, concretamente, configura ameaça à ordem democrática, poderá tornar inoperante esse amplo e poderoso arsenal. Por assim dizer, o que falta ao projeto do regime de proteção da democracia da Unasul não são as ‘armas’, mas os ‘alvos’.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREEDOM HOUSE. Country report. Venezuela (2009). Disponível em: [http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=363&year=2009&country=7733]. Acesso em: 23/12/2010.
HOFFMANN, Andrea Ribeiro. “Avaliando a influência das organizações regionais de integração sobre o caráter democrático dos regimes de seus Estados-partes: O caso do Mercosul e o Paraguai.” Cena Internacional, ano 7, n° 2, p. 83-92, 2005.
PEVEHOUSE, Jon C. “Regional IOs and democratic consolidation: evidence from cases.” In: Idem. Democracy from Above: Regional Organizations and Democratization. Cambridge University Press, 2005. p. 169-198.
REVISTA VEJA. O conceito equivocado de democracia em cúpula da Unasul: Países que tentam cercear a imprensa discutem 'compromisso democrático'. 26/11/2010. Disponível em: [http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/o-conceito-equivocado-de-democracia-da-unasul]. Acesso em: 23/12/2010.
SANTISO, Carlos. “Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira.” Contexto Internacional, vol. 24, n° 2, p. 297-341, 2002.
VILLA, Rafael A. D. “A Questão Democrática na Agenda da OEA no pós-Guerra Fria.” Revista de Sociologia Política, n. 20, 2003, p. 55-68.
DOCUMENTOS
Carta Democrática Interamericana.
Comunicado de Brasília da I Reunião de Presidentes da América do Sul.
Declaración de Buenos Aires sobre la situación en Equador.
Projeto de Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia.
Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile.
George Sturaro é mestrando em Relações Internacionais pela UFRGS e bacharel em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA
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