A falência do Estado brasileiro: as implicações do processo de privatizações
Mundão

A falência do Estado brasileiro: as implicações do processo de privatizações


Ana Carolina Malucelli Berger



Historicamente, durante a maior parte do processo de fortalecimento econômico nacional, a personificação do Estado em um governante se mostrou presente durante muitas décadas. Após a crise de 1929 o país entrou no que se denomina Processo de Substituição de Importações, ou seja, uma rota para o abandono de uma economia essencialmente agrária rumo a uma industrialização que possibilitaria a produção interna de bens antes importados; no entanto, o domínio estatal se articulou principalmente entre os anos 40 até o início dos anos 90 devido a diversos fatores, tais como o controle do capital estrangeiro, crises econômicas e exploração dos recursos produtivos internos. Nesse recorte temporal as empresas estatais, principalmente no setor da indústria pesada, se articularam com capital e produção multinacional, bem como colaborações setoriais de empresas privadas nacionais para formar o tripé motor do crescimento brasileiro, característico de nosso impulso econômico.

A partir da década de 70, contudo, em face da pressão inflacionária, crise política e crises econômicas decorrentes de choques do petróleo, a aliança que movia o país em direção ao expansionismo industrial fragilizou-se. Um consenso começou a se estabelecer no imaginário de empresários, governantes e detentores de capital que uma onda de privatizações traria o Brasil novamente para uma revitalização da economia defasada. É a partir desse período em que uma fissura começa a se desenhar no intervencionismo do Estado sobre a economia, que abrirá caminho para diversas concessões características do final dos anos 80 e 90. 
Mais do que os eventos decorrentes da Crise de 1929, os anos 40 e 50 foram palco de muitos empreendimentos originários da ação do poder central brasileiro. Muito além da compra de diversas companhias britânicas no setor ferroviário, o Governo envolvia-se com atividades voltadas para o desenvolvimento de setores específicos, tendo em vista a supressão de gargalos infraestruturais e controlava ativamente o câmbio frente às necessidades. Como marco deste processo, temos a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) em 1952, erguendo-se como um banco de investimento capaz de proporcionar capital para empreendimentos, principalmente para a indústria siderúrgica; no ano seguinte o Brasil presenciaria a fundação da Petrobrás, concentrando toda a exploração petrolífera e a maior parte das atividades de refino, ação que decorreu diretamente da emergência de um espírito nacionalista que impulsionou também a criação da Companhia Vale do Rio Doce, no âmbito da mineração; ainda é possível citar os bancos estaduais fundados para proporcionar facilidades comerciais e desenvolvimento de crédito e o controle de tarifas de serviços públicos no setor de energia elétrica, telefones, transportes públicos e, mais tarde, alimentos, combustíveis e preços de alugueis. Durante a década de 60 novas ações estatais são tomadas no sentido de desenvolver outras áreas da sociedade. Isso se reflete, por exemplo, na criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), Programa de Integração Social (PIS), unificação de empresas estatais na Eletrobras, na nacionalização da rede de telecomunicações sob o comando da Embratel e, principalmente, na fundação do Conselho Interministerial de Preços (CIP), em 1968, ao controlar custos e preços dos principais setores da economia.
A despeito dos Choques do Petróleo na década de 1970, até o final desta, as estatais ainda possuíam funcionamento razoável, mas, com a erupção de uma inflação galopante e uma dívida ocasionada, principalmente pelo impulso desenvolvimentista, as empresas públicas passaram a funcionar como instrumento de políticas macroeconômicas, uma vez que, para conter o ritmo inflacionário, seus preços eram controlados diretamente; exemplificando este fato, o preço de produtos como aço e ferro, sofreu queda de 50% entre 1979 e 1984 e, o do setor de telefonia, 60% (BAER, 2009). Ainda neste contexto, o Governo, a fim de arrecadar divisas, fez massivos empréstimos em um cenário desfavorável em nome das empresas estatais, tornando o ambiente nacional pouco atraente para o capital estrangeiro, fazendo com que os investimentos caíssem drasticamente durante a década de 80.
Diante desse cenário, as primeiras tentativas para conter a influência do Estado na economia ocorrem no início da década de 80, com a criação do Programa Nacional de Desburocratização, Secretaria Especial para o Controle de Empresas Estatais (SEST) e de uma Comissão Especial de Desestatização. No entanto, tais esforços não tiveram resultados positivos em um primeiro momento, uma vez que as condições de venda de empresas públicas ainda eram desfavoráveis devido à profunda recessão.
É somente após o mandato de Sarney que a privatização será pensada como fator intrínseco para uma modernização econômica no Brasil, sob o programa de privatização de Collor, em 1990. Nesse sentido, foi concebida a Lei 8.031, que discorria e estabelecia procedimentos formais para as privatizações, sob a qual a maioria das vendas ocorria através de leilões públicos gerenciados pelo BNDES e, preparou o governo para a venda de empresas responsáveis pelo serviço público diante da receita de US$ 6,4 bilhões já em 1993. Com a concessão de participação ilimitada aos estrangeiros em 1992, a maior parte das indústrias estatais foi privatizada, principalmente na área petroquímica e siderúrgica, indicando um número maior de concessões no governo de Itamar Franco do que no de Collor, contabilizando 20 empresas já desestatizadas.  Após a mudança administrativa em 1995, Fernando Henrique Cardoso foi responsável pela intensificação deste processo, incluindo a concessão de empresas estaduais e municipais e, estatais voltadas para a mineração; vale ressaltar também a promulgação da Lei de Concessões (Lei 8.987), que regulamentava ainda mais os trâmites das privatizações, estabelecendo tarifas e prazos, rompia com monopólios públicos nas telecomunicações, setor petrolífero e distribuição de gás encanado, bem como permitia que uma parcela grande de consumidores definisse os seus fornecedores; pôde-se presenciar, ainda, a privatização de serviços sanitários, rodovias e estradas de ferro.
O que se pode notar dessa política de concessões é que, era encarada como uma ponte de estabilidade e, permitia que o déficit público fosse amenizado e sua receita se elevasse devido ao valor das vendas. Contabilizando os efeitos das privatizações, houve, entre 1991 e 2005, mais de 200 vendas de empresas estatais que, juntas, arrecadaram o valor de US$ 87,8 bilhões (receita derivada principalmente de telecomunicações e energia), dos quais 36,4% são provenientes de capital estrangeiro.
Uma das conseqüências básicas de análise desse período trata-se da empregabilidade. Os empreendimentos estatais, a partir dos anos 60, representaram um vetor importante para a geração de empregos e de bons salários, gerando, muitas vezes, excesso de colaboradores e, conseqüentemente, déficit. Essa tendência passou a reverter-se antes mesmo das concessões, uma vez que o excedente de mão de obra era eliminado previamente para tornar as a empresa estatal mais atrativa, é o caso da Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), que contou com a demissão de pelo menos 20 mil funcionários previamente à privatização.
Entra em cheque, portanto, a grande crítica a esta série de desestatizações: a questão da distribuição de renda.   Com a redução de grande parte do quadro operacional das ex-estatais, as taxas de desemprego subiram rapidamente, sob o discurso do capital privado de “eficiência econômica” e dinamização de processos produtivos ao reduzirem seu pessoal e suas despesas com encargos sociais. O que se observa é que, serviços sociais anteriormente providos pelo aparato estatal tornaram-se onerosos e em momento algum repassaram à população parte de suas receitas, concentrando uma enorme quantia de capital uma vez que, dentre as 20 empresas mais lucrativas do Brasil, quatro haviam sido privatizadas: CSN, Light e Vale do Rio Doce.
Outro efeito importante das medidas privatizantes atingiu o ponto nevrálgico da economia: preços. Como dito anteriormente, para conter a expansão inflacionária, o governo brasileiro controlava as tarifas de serviços públicos e mantinha os seus custos relativamente baixos e defasados em anos. A partir do momento em que serviços prestados pelo Estado passaram para as mãos da iniciativa privada, setores como telecomunicações, energia, portos e estradas passaram por um processo de reajustes de preços, que elevou a receita das empresas compradoras e atingiu diretamente o salário real do contribuinte.
É de se considerar, que o processo de privatizações orquestrado na ordem social brasileira divide opiniões e, faz-se necessário abordar ambas. Primeiramente, um novo padrão de desenvolvimento foi estabelecido, não mais ordenado sob a ótica estatal, voltada para um impulso constante de industrialização e sim, sob as regras da concorrência; o desafogamento de despesas do Estado com salários elevados e numerosos rumo a uma maior dinamização proveniente do setor privado (por possuir capital destinado à inovação, tecnologia, etc.) também possui potencial político de abordagem.
Não obstante, os padrões de desenvolvimento tornaram-se cada vez mais precários, uma vez que os rendimentos não foram repassados à população através da geração de emprego e de serviços acessíveis para classes mais baixas. Ademais, ao se privatizar diversos setores a máquina estatal deu brecha à criação de conglomerados, a fusões, visavam um maior controle de setores específicos para domínio de preços e quantidade de consumidores, agravando ainda mais a situação dos já prejudicados pela desigualdade na distribuição de renda. Fato é que, não se trata de criticar o processo abordado de privatizações, que foi decorrente de acontecimentos adversos e naturais da economia mundial e nacional; fator-chave é analisar de que maneira a gestão de concessões foi realizada.

REFERÊNCIAS
BAER, Werner. A economia brasileira: uma abordagem profunda da economia brasileira até 2008. 3. ed. São Paulo: Nobel, 2009.
GIAMBIAGI, Fábio et al. Economia brasileira contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
CARNEIRO, Ricardo. Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XXI. São Paulo: Unesp, 2002.

Ana Carolina Malucelli Berger é acadêmica do 5º período do Curso de Relações Internacionais do Unicuritiba.



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