Mundão



A Mão Pesada do Estado
vs.
A Mão Invisível do Mercado

Por Carlos-Magno Esteves Vasconcellos.

Na edição de número 2278, da última 4ª feira (18/07/2012), a Revista Veja dedicou 22 de suas quase 70 páginas de matérias e informações diversas à discussão sobre liberalismo e intervencionismo estatal no âmbito da economia (18 páginas de matéria especial sobre economia mais três páginas de uma entrevista com o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso que representa um verdadeiro aperitivo à matéria especial localizada entre as páginas 70 e 87, mais a página 111). A capa da referida edição da Veja revela a ousada intenção da revista com uma manchete intrigante: “A BATALHA QUE VAI DEFINIR O SÉCULO XXI. A nova disputa entre a mão pesada do estado e a mão invisível do mercado é um desafio para o capitalismo, com impacto nas economias, nas empresas e no consumo”. O assunto e a maneira como Veja o tratou merecem uma reflexão.

Em primeiro lugar, a contradição entre mão invisível do mercado e mão visível do Estado, que Veja tenta ressuscitar, revela-se um tremendo anacronismo. Desde a década de 1930, portanto há cerca de 80 anos, já não existe mais a mão invisível do mercado, que foi, literalmente, amputada da lógica capitalista por John Keynes com sua Teoria Geral. Desde então, somente existe a mão visível do Estado que opera aberta e inescrupulosamente em benefício da reprodução capitalista. Aliás, a história do desenvolvimento econômico mundial dos últimos séculos mostra, exaustivamente, que o capitalismo somente pode existir e se sustentar graças à mão visível do Estado, que às vezes se faz mais pesada, às vezes menos pesada.   
Em segundo lugar, é interessante observar o caráter insidioso e irresponsável do jornalismo de Veja. As vozes e opiniões externadas nas páginas da revista carecem enormemente de isenção política. Todos os entrevistados e todas as matérias da revista, literalmente todos, são identificados com a concepção liberal do capitalismo.
Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, quando questionado nas páginas amarelas, sobre o risco do Brasil perder o rumo, escreve: “O perigo está na tendência ao protecionismo. (...) O protecionismo seria ruim para nós. Temos de aumentar a produtividade para poder baixar os preços e assim beneficiar a todos. Mas, quando se fecha o mercado, reduz-se a competição e, ao fazê-lo, reduz-se também o incentivo para as pessoas aumentarem a produtividade. Com o tempo, fica-se defasado. Nada disso é do interesse do Brasil”. Na página 76, a revista entrevista o economista liberal e ex-diretor de finanças públicas do FMI, Vito Tanzi. Ao ser questionado sobre os deveres imutáveis do Estado na economia capitalista, o entrevistado responde: “Neste começo de século, parece ser uma moléstia mundial a insistência dos governos em não reduzir seu volume de gastos. Acima de um determinado limite, os gastos públicos se tornam insustentáveis. (...) Com Keynes, surgiu a idéia de que o governo, em situações especiais, pode contratar um grupo de trabalhadores para abrir um buraco e outro para tapá-lo, mantendo, assim, certo nível de emprego. Se isso funcionou durante a Grande Depressão americana dos anos 30 é ainda motivo de debate. Mas, para mim, parece fora de dúvida: hoje não funciona mais”. Um pouco mais para frente, nas páginas 78 e 79, a revista entrevista o também liberal ex-Ministro da Fazenda do Governo de José Sarney, Maílson da Nóbrega, e o cientista político liberal norte-americano e presidente do Eurásia Group, Ian Bremmer. No decorrer de sua entrevista, Maílson da Nóbrega adverte: “Portanto, elas (as crises do capitalismo) parecem mesmo inevitáveis, seja qual for o peso da mão do estado. O que importa mesmo, quando se fala do papel do estado, é saber que ele é forte quando é capaz de criar as condições propícias ao empreendimento e à prosperidade”. Por seu lado, Ian Bremmer afirma: “Não estamos nos defrontando com a derrocada do sistema de livre mercado. Temos mais o fracasso de políticos que não conseguiram criar as regras inteligentes necessárias para o capitalismo de livre mercado funcionar nem as condições para o crescimento a longo prazo da economia”.
O jornalismo monolítico de Veja induz seus leitores ao engano, pois em suas páginas não reproduz em hipótese nenhuma ‘a batalha que vai definir o século XXI’. Simplesmente, porque em uma batalha deve haver alguma oposição, ninguém batalha sem adversário! A matéria de Veja é unilateral e tendenciosa. Jornalismo imprestável!
Mas, o que mais chama a atenção em toda a reportagem de Veja é a Carta ao Leitor (página 111?). Nesta Carta, os editores da revista assumem um tom apocalíptico para o seu fundamentalismo de mercado. Ali, podemos ler: “Veja dedica dezoito páginas desta edição a uma reportagem especial sobre o papel do governo nas economias contemporâneas, tema central do debate político nacional e internacional e de enorme impacto no cotidiano das pessoas. Essa questão é pendular. Desde os primórdios do capitalismo no século XIX, os governos ora tendem a ser fortes e onipresentes na definição dos rumos da economia, ora refluem e os mercados – o conjunto de empresas industriais, comerciais, financeiras, seus clientes, fornecedores e funcionários – tomam o centro do palco. Depois de uma década de louvação aos mercados nos anos 1990, quando a globalização do modelo de economia liberal triunfou, tirando centenas de milhões de pessoas da miséria e levando a prosperidade a rincões de milenar atraso como a China e a Índia, o pêndulo está novamente propenso aos governos fortes. Na teoria e na política, essa discussão fica restrita aos extremos. De um lado estão os que defendem a total liberdade do capitalismo, cuja ‘irracional racionalidade’, na definição do alemão Max Weber (1864-1920), lhe daria condições para, sozinho, cuidar da produção e da distribuição eficiente dos bens. Na extremidade oposta ficam os seguidores de Karl Marx (1818-1883), que, vendo no capitalismo a ‘lógica da contradição’, teorizam seu fim pela revolução comunista, a abolição da propriedade privada, com o triunfo do estado centralizador e totalitário. A realidade, felizmente, está longe dos extremos. Quem melhor encarna as virtudes do centro é o inglês John Maynard Keynes (1883-1946). O keynesianismo orienta os governos a aumentar gastos para sair de crises”. 
Da maneira como Veja coloca o problema, o mundo estaria, hoje, diante de um inquietante dilema econômico, cuja solução não comporta dúvidas. Afinal de contas, em que tipo de sociedade desejamos viver: no ‘capitalismo livre’ que dissemina prosperidade pelo mundo todo; ou no capitalismo de Estado keynesiano e ineficiente; ou ainda, no comunismo centralizador e totalitário?
O reacionarismo de Veja a impede de perceber que todos esses ‘modelos’ de sociedade que enumera estão superados. No mundo atual, as sociedades estão em busca de um novo ‘modelo’ de convivência social. Um ‘modelo’ alternativo e superior a tudo o que existe e já existiu. Um ‘modelo’ sócio-econômico que transfira o controle efetivo e direto sobre a produção e a distribuição da riqueza para as mãos daqueles que efetivamente produzem, e que elimine de vez com toda forma de violência social nacional e internacional, e que além disso fomente a reinvenção de uma autêntica democracia política participativa, fortalecida por uma mídia verdadeiramente livre e construtiva.  
Veja e seu jornalismo insidioso, monolítico e reacionário definitivamente não fazem parte do novo mundo que está em gestação.


* Carlos-Magno E. Vasconcellos é Doutor em Economia pela Escola Superior de Economia de Varsóvia, Polônia, e professor titular das cadeiras de Economia Política Internacional e Empresas Transnacionais do Curso de Relações Internacionais do UniCuritiba.





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