O Filho da Diarista
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O Filho da Diarista


Faz uns três meses que a diarista não aparece pra limpar a casa. Uma barata de porte considerável foi localizada no corredor da sala ontem de noite. Voava com a perícia de uma águia: eu e a minha companheira demoramos quase cinco minutos para aniquilá-la. Apesar da celeuma sobre a origem de tal inseto e das tolas e um tanto agressivas suposições femininas acerca da higiene do lar, principalmente no que se refere ao banheiro, credito a existência da barata aos entulhos dos fundos de casa, de responsabilidade do cunhado. Devo vinte e cinco reais pra diarista. É possível que exista uma conexão entre a minha dívida e os três meses em que a diarista não aparece em casa. E a barata. Semana passada a diarista passou na banca da minha irmã. Perguntou se por acaso eu não teria deixado a modesta quantia no caixa. Não deixei, disse pra minha irmã que esqueci. Não esqueci, aliás, nunca me esqueço de quem devo, tenho todos os nomes anotados, um pequeno livrinho da vergonha, já que constam poucos nomes, talvez quatro. O nome da diarista está lá: seis letras, a começar por e, e de espólio, que como podemos averiguar, é uma bela palavra, apesar do caráter tétrico. Prometi de pagar essa semana, sem falta.



A diarista apareceu antes de ontem pra limpar a casa de meus pais, que é bem maior que a minha e melhor conservada, evidentemente. As baratas não se aconchegam por lá por mera piedade, já que na casa de meus pais há um gato e o gato tem água no pulmão, segundo o veterinário. O filho da diarista trabalhou comigo semana passada, indicação dela. Ela trabalha das oito da manhã às seis da tarde de segunda a sábado, duas casas por dia. Seu filho estava parado, sem fazer nada, apenas cuidando do irmãozinho mais novo, o que não me pareceu exatamente um ofício tormentoso, já que mais um irmão auxiliava também na guarda. O filho da diarista apareceu no momento certo. Estava a precisar de um entregador de listas telefônicas pra região da Câmara Municipal. Ele foi trabalhar comigo já no dia seguinte da indicação e fiz os avisos de praxe sobre o teor desgraçado do trabalho, de sol a sol, uma hora de almoço, um carrinho de feira carregado, casa em casa, protocolos, cachorros soltos nos becos, rentabilidade discreta. Ele aceitou o trabalho.



O filho da diarista trabalhou bem, já que não me deixei levar pelos atrasos sistemáticos dos primeiros dias e as poucas palavras suas quando perguntado sobre as impressões primeiras do trabalho. O rapaz, dezessete anos, não dezesseis como está no jornal de hoje, trabalhava bem mesmo, reclamava pouco e com uns quatro dias de serviço até já explanava sobre os méritos artísticos do falecido rapper Sabotage nas horas de folga.



A primeira semana de trabalho encerrou e com ela veio o seu primeiro salário. O filho da diarista tratou de investir seus créditos no cabeleireiro e apareceu no dia seguinte com um penteado a base de gel, decorado com discretas mechas amarelas ou marrons. Quase um pequeno galã. Talvez as mechas não fossem inéditas, já que até então só usava gorros pra trabalhar, independente dos humores do tempo. O gel, sim, o gel era um novo agregado. Nesse dia, ele trabalhou bem também.



No dia seguinte, esperei-o no horário combinado. Evidentemente, ele não pontualizou, e acostumado que estava, deixei o material na banca pra que assim que ele chegasse começasse seu roteiro, como nos dias anteriores. Ele não apareceu nesse dia. Nem no outro. Nem no terceiro dia. Tive que trocá-lo. Após uma ligeira conversa, alegou o surgimento de uma proposta de trabalho com carteira assinada. Desejei sorte, não sem antes escalá-lo pra um trabalho urgente de panfletagem, que já era pra ontem. Ele aceitou (sem muita empolgação) após a informação de pagamento no fim do dia. Mais uma vez trabalhou certinho e deixamos acertados pra fazer o mesmo serviço na quinta da semana seguinte, sob as mesmas condições.



Antes de ontem, no dia em que a diarista foi limpar a casa de meus pais, encontrei-o no centro da cidade. Não mais poderia trabalhar comigo na quinta-feira. Um negócio que tinha que fazer com o pai, algo assim. Tudo bem, disse. Cheguei em casa e deparei-me com a sua mãe, que estava lavando roupa. Disse que nessa semana iria pagar, sem falta, e aproveitei pra perguntar se o seu filho poderia trabalhar comigo na quinta-feira. Ela disse que sim, já que ele não tinha nada pra fazer mesmo. Certeza que ele vai trabalhar, fique tranquilo.



Ontem, quinta-feira, ele não veio trabalhar. A diarista avisou a minha mãe logo cedo: ele foi atropelado na noite anterior ao atravessar a avenida principal do bairro. Morreu. O motorista fugiu sem prestar socorro. Ele não vai poder trabalhar hoje, foi exatamente o que a diarista disse. Fui ao enterro de tarde. Havia sob o caixão uma foto dele com uma legenda contendo palavras de amor e saudade. Não sei de quando é a foto. Ele está usando gel. O religioso disse na oração que a morte não existe. A morte existe sim.



Hoje o jornal está noticiando sua morte. Ele tinha dezessete anos, não dezesseis.



Daniel Zanella



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