As regras do jogo: Brasil e os megaeventos esportivos
Mundão

As regras do jogo: Brasil e os megaeventos esportivos





Camilla Hoshino



A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Assim a trajetória desse esporte é resumida por Eduardo Galeano no livro “Futebol ao sol e à sombra”. Quem acompanha de perto o cenário do futebol, por mais apaixonado que seja, sabe bem a que o escritor se refere: atores trocam de papel a cada oferta recebida e a encenação, apesar da emoção, geralmente se assemelha à comédia. “O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue” (GALEANO, 2009, p 10). Para os mandachuvas do esporte, mais do que beleza, as palavras de Galeano demonstram o segredo do sucesso, pois os verdadeiros protagonistas do futebol são aqueles que se mantém por trás das cortinas escrevendo o roteiro, ou melhor, as regras do jogo.


Há cerca de quatro anos, quando a Federação Internacional de Futebol (FIFA) anunciou que o Brasil seria a sede da Copa do Mundo de 2014, houve comemoração de milhões de brasileiros como se já tivéssemos ganhado a taça. No entanto, ao passar a euforia, vieram algumas preocupações: estádios, aeroportos, transportes públicos e obras de infra-estrutura urbana em geral. Como preparar o país para receber um megaevento esportivo? Se, por um lado, este parece ser o maior dilema do governo - já que não podemos dar vexame no cenário internacional -, por outro existe uma preocupação maior no campo dos direitos humanos por parte de ONGs, movimentos sociais e entidades organizadas da sociedade civil.

Segundo a urbanista e relatora Especial das Nações Unidas para direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, que vinha recebendo constantes denúncias de outros países no contexto dos megaeventos, principalmente esportivos, o Brasil também é palco de graves violações aos direitos humanos.  Em virtude das exigências da FIFA e da corrida contra o tempo para deixar o Brasil “pronto” até 2014, abre-se uma brecha para a corrupção e desrespeito. Como explica Rolnik, cria-se no país uma situação em que a legislação em relação a direitos trabalhistas, contratos e licitações, por exemplo, não precisa ser cumprida. Instaura-se uma espécie de “ilegalidade legalizada” por meio de uma nova forma de planejamento urbano. Dentro dessa realidade, o conceito “Cidade de exceção” é trabalhado pelo professor do IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carlos Vainer, para demonstrar a redefinição das formas de poder dentro das cidades, onde as estratégias econômicas locais passam para as mãos do setor privado.  Enquanto poucos grupos se apropriam do espaço público, a cidade vai sendo transformada em empresa, funcionando segundo a lógica da acumulação de capital.

Como prova disso, no ano passado foi decretada uma medida provisória alterando as leis de licitações, uma ótima oportunidade para as grandes empreiteiras entrarem em campo nos últimos minutos do segundo tempo. E a indústria da construção civil - já conhecida pela informalidade e exploração - também não fica de fora: canteiros de obra precários e regimes de trabalho em condições indignas para que as obras sejam concluídas mais rapidamente. Em protesto, trabalhadores responsáveis pelas construções nos estádios entraram em greve nos últimos meses. Ou seja, só canta vitória quem está no time do capital. As empresas multinacionais, por exemplo, aproveitam a oportunidade para reforçar seus slogans, sem concorrência, já que a FIFA exige que, em um raio de 2km ao redor dos estádios, só sejam vendidas e divulgadas as marcas dos patrocinadores da Copa, impondo restrições aos comerciantes locais. É a FIFA que detém esse direito de exclusividade em relação ao comércio no entorno dos estádios? Aparentemente não, mas a disputa não encerra por aí. 

A votação da Lei Geral da Copa, que permitiria, entre outras leis de exceção, a criação de juizados especiais criminais dentro dos estádios – como também aconteceu na África do Sul será votada provavelmente nesta semana pela Câmara dos Deputados. Para piorar, o Projeto de Lei prevê ainda que a União deverá arcar com possíveis danos e prejuízos da FIFA, tornando-se avalista de um empreendimento particular. Dessa forma, o que resta para a maior parte da população é assistir ao mundial pela televisão, sentados no sofá de casa.

A casa caiu

De todas as “faltas” cometidas contra os direitos humanos, talvez a mais grave esteja relacionada ao direito à moradia adequada. Já estão sendo realizados, sem respeito, participação ou consulta à população local, despejos e remoções forçados ligados direta ou indiretamente à construção de obras para a Copa ou à revitalização de espaços urbanos para megaeventos. Acontece que o Brasil é, desde 1992, signatário do Pacto Internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais entre os quais se encontra o direito à moradia e, como consta nos Comentários-Gerais n.4 e n.7 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, as regras deveriam ser claras: as comunidades têm direito a conhecer os novos projetos antes de serem retiradas do local, têm direito a discutir alternativas para os projetos, assim como as compensações recebidas, que, em forma de indenização ou não, não podem ser piores do que as condições anteriores. As cidades-sede mostram a contradição entre a afirmação formal desses direitos e o seu cumprimento efetivo. E o governo, que deveria se colocar como árbitro justo dessa partida, parece até que está comprado pelos adversários.

E já que estamos falando em jogo sujo[1], também é importante destacar a atitude da FIFA frente à imprensa. Alguém se lembra do que aconteceu com Andrew Jennings? Para refrescar a memória, o jornalista investigativo da BBC de Londres foi o único profissional de imprensa proibido de frequentar as coletivas da FIFA. Jennings se tornou inimigo número um dos “grandes chefões” ao publicar o endereço dos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro no mundo do futebol: mansão Sunny Hill, em Zurique. Sim, ali se encontra a sede da FIFA. Criada em 1904, a instituição possui mais de cem anos de experiência na realização de eventos esportivos. E para enfrentar os veteranos, a solução é saber o que as cidades que já sediaram esses jogos têm para nos ensinar.

Poderíamos pegar o exemplo da última Copa do Mundo e analisar quais foram os legados sócio-econômicos efetivos deixados após o evento, mas iríamos nos decepcionar. Os estádios na África do Sul viraram verdadeiros elefantes brancos. Em muitos deles, o custo de manutenção é mais alto do que o lucro gerado com jogos e outras atividades agregadas a essas construções. Além disso, 20 mil famílias foram deslocadas para áreas periféricas empobrecidas e ocorreu uma espécie de higienização social, em que os primeiros afetados foram as populações de rua, que são forçadamente segregadas. Mas o prejuízo não afetou apenas os sul-africanos. Nas Olimpíadas de Pequim, por exemplo, mais de um milhão de pessoas foram desalojadas, assim como surgiram várias denúncias de ativistas de direitos humanos durante a realização dos Commonwealth Games em Nova Déli, na Índia.

A realização dos megaeventos tem sido acompanhada da redução de autonomia dos Estados, que se comprometem a atender as exigências da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional (COI), por meio de cadernos de encargos e até acordos secretos, sem ao menos passar por uma consulta ou debate público. Mas a população deve ter tanto o direito à transparência quanto à gestão do direito público, assim como o direito à informação em geral a respeito dos impactos da Copa do Mundo de 2014 e também das Olimpíadas de 2016. 

Ninguém sabe ao certo quanto irá custar o espetáculo, mas estima-se que essa deve ser a Copa mais cara da história. O balanço divulgado pelo governo federal passou de R$ 23,1 bilhões no mês de janeiro de 2011 para R$ 27,1 bilhões no mês de agosto. Ainda assim, esses valores contradizem o que foi estimado pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB, em parceria com a própria CBF): R$ 112 bilhões. Mesmo entidades públicas como a Consultoria Legislativa do Senado Federal apostam alto: US$ 40 bilhões, com risco de acréscimos de última hora. O dinheiro público, que poderia estar sendo direcionado para reassentar famílias, para a saúde, educação e outras carências que sabemos haver no Brasil, é utilizado para a construção e reconstrução de estádios - em Curitiba, 90 milhões de Reais foram concedidos em “potencial construtivo” para o Clube Atlético Paranaense.

Serão 64 jogos, 130 horas, totalizando bilhões de dólares. Ou seja, podemos calcular cerca de um espetacular bilhão de reais por hora de jogo. Os danos, entretanto, são incalculáveis. Será que a taça já é mesmo nossa?


Camilla Hoshino é acadêmica do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba, e do Curso de Jornalista pela UFPR.



Referências Bibliográficas

GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM, 2009.
JENNINGS, Andrew. Jogo Sujo: o mundo secreto da FIFA: compra de votos e escândalo de ingressos. São Paulo: Panda Books, 2011.
VAINER, Carlos. Cidade de Exceção: reflexões a partir do Rio Janeiro. Artigo apresentado no XIV Encontro Nacional da Anpur, maio de 2011, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.anpur.org.br/anais/ena14/ARQUIVOS/GT1-1019-633-20110106150243.pdf


Sites eletrônicos:

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL: http://www.diplomatique.org.br/
COMITÊ POPULAR DA COPA CURITIBA: http://copa2014curitiba.wordpress.com/


[1]          Jogo sujo, além de ser uma expressão muito adequada para descrever o contexto dos megaeventos esportivos, também é o nome do livro lançado pelo jornalista Andrew Jennings, em 2011. 





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